O SANTO INQUÉRITO E AS BRUXAS DE SALÉM
Paralelos na dramaturgia de
Arthur Miller e Dias Gomes
Dois autores do século XX que viveram na pele a perseguição em períodos de intolerância política, o americano Arthur Miller e o brasileiro Dias Gomes têm vários paralelos em sua vida e obra – porém, talvez o principal ponto de convergência esteja nas peças “As bruxas de Salém” (The Crucible), que Miller escreveu em 1953, e “O Santo Inquérito”, texto de Dias Gomes lançado treze anos depois.
Arthur Miller, filho de judeus poloneses que deixaram a Europa por conta das perseguições religiosas que se tornaram comuns até o fim da 2ª Guerra Mundial, usou um episódio da história religiosa americana para falar sobre intolerância religiosa e política. Ao falar de uma cidade sacudida por falsas acusações de bruxaria, motivadas por inveja, ganância, ciúme e luta pelo poder, Miller expôs não só a hipocrisia “quaker” como fez um paralelo com outros períodos – os tribunais de exceção nazistas e a perseguição aos comunistas durante a Guerra Fria, que estava ainda no início.
Já Dias Gomes, que desde uma de suas primeiras peças, “Pé de cabra” (1942), enfrentou problemas com a censura, acusado de ser comunista, sempre teve a temática religiosa e política entre seus temas. Seu maior sucesso no teatro, “O pagador de promessas”, é um libelo contra a intolerância, mas é em “O santo inquérito” que o autor esmiúça as artimanhas de quem tem o poder, a tortura moral e psicológica, a imputação de acusações mentirosas sobre quem não tem a menor oportunidade de defesa, enfim – analisa situações universais usando como pano de fundo a Inquisição.
Mesmo voltados para momentos históricos até certo ponto distantes do período em que foram lançadas as peças, Arthur Miller e Dias Gomes deixavam claro para o leitor ou espectador mais atento que estavam falando, sim, dos dias atuais. E a atualidade dos textos é tanta que, nos dias de hoje, ainda possuem a mesma força e conseguem servir como reflexão para fatos que nos movem. Ou não seriam os dias de hoje o tempo em que refloresce a intolerância – desde a perseguição religiosa até o preconceito por orientação sexual, política ou por raça e a volta de minorias nazi-fascistas e ditadores populistas em diversos países?
Arthur Miller, quase profeticamente, adiantou em “As bruxas de Salém” a perseguição de que seria vítima, alguns anos mais tarde. Em junho de 1956 o escritor teve que depor no Comitê Parlamentar das Atividades Antiamericanas. Ele fora denunciado pelo cineasta Elia Kazan, seu amigo pessoal, como participante de reuniões do Partido Comunista. No ano seguinte, Miller foi considerado culpado de desobediência ao Congresso, depois de se recusar a entregar os nomes dos membros de um círculo literário suspeito de integrar o Partido Comunista – condenação que foi anulada em 1958 pela Corte de Apelações americana.
Casado à época com o furacão Marilyn Monroe – uma relação que durou apenas cinco anos – Arthur Miller foi uma das milhares de vítimas do chamado Macartismo, o período de maior perseguição ao comunismo nos EUA durante a Guerra Fria. Mesmo já sendo considerado um dos maiores dramaturgos de seu país, autor de peças fundamentais como “A morte do caixeiro viajante” e “Panorama visto da ponte”, foi investigado de forma agressiva e, em última instância, condenado apenas por não compactuar com a forma de pensamento vigente à época. É o caso clássico de – “se não está conosco, está contra nós”.
Dias Gomes, se não foi profético, certamente refletiu o que aconteceu no Brasil a partir do golpe militar, que aconteceu dois anos antes do lançamento de “O santo inquérito”. O regime de exceção que havia se instalado, cerceando as instituições democráticas e já dando mostras da perseguição a pessoas do meio acadêmico, jornalístico, artístico e político, bem como a violência física, moral e psicológica a que eram submetidos os chamados “subversivos”, são transpostos para o palco, numa forma brechetniana, a partir do inquérito de que é vítima Branca Dias, acusada de judaísmo e heresia durante a Inquisição no Brasil.
Assim como Miller, Dias Gomes também gozava de prestígio nacional como dramaturgo e já havia escrito algumas de suas peças mais importantes, como “Pé de Cabra”, “O pagador de promessas” (levada ao cinema em 1960) e “O berço do herói” (1963), além de ter transposto para o rádio-teatro cerca de 500 peças do teatro universal, em vinte anos de trabalho. Mesmo assim, foi perseguido como integrante do Partido Comunista e censurado como artista, durante todo o regime militar. A inocência e a pureza de espírito de Branca Dias, que tem suas palavras distorcidas pelos seus acusadores, eram a resposta do dramaturgo aos inquisidores de plantão nos anos 60.
No fim, como parece sempre acontecer, aos períodos de intolerância seguem-se períodos de maior liberdade de pensamento – até que uma nova onda de obscurantismo tome o poder. A questão é identificar quando os períodos obscuros estão se instalando na vida das pessoas e da sociedade, como nuvens de tempestade. Os sinais nem sempre são visíveis, mas são perceptíveis. Quando pessoas são espancadas na rua porque são ou parecem ser homossexuais, quando jornalistas são mortos porque estão fazendo seu trabalho de chegar ao fundo do poço da notícia, quando pessoas são afastadas de suas funções ou preteridas em vagas de emprego porque não são da mesma raça ou não comungam da mesma religião, forma de pensamento ou orientação sexual, é sinal que os inquisidores de plantão chegaram de novo ao poder.
(Direitos reservados.)
Paralelos na dramaturgia de
Arthur Miller e Dias Gomes
Dois autores do século XX que viveram na pele a perseguição em períodos de intolerância política, o americano Arthur Miller e o brasileiro Dias Gomes têm vários paralelos em sua vida e obra – porém, talvez o principal ponto de convergência esteja nas peças “As bruxas de Salém” (The Crucible), que Miller escreveu em 1953, e “O Santo Inquérito”, texto de Dias Gomes lançado treze anos depois.
Arthur Miller, filho de judeus poloneses que deixaram a Europa por conta das perseguições religiosas que se tornaram comuns até o fim da 2ª Guerra Mundial, usou um episódio da história religiosa americana para falar sobre intolerância religiosa e política. Ao falar de uma cidade sacudida por falsas acusações de bruxaria, motivadas por inveja, ganância, ciúme e luta pelo poder, Miller expôs não só a hipocrisia “quaker” como fez um paralelo com outros períodos – os tribunais de exceção nazistas e a perseguição aos comunistas durante a Guerra Fria, que estava ainda no início.
Já Dias Gomes, que desde uma de suas primeiras peças, “Pé de cabra” (1942), enfrentou problemas com a censura, acusado de ser comunista, sempre teve a temática religiosa e política entre seus temas. Seu maior sucesso no teatro, “O pagador de promessas”, é um libelo contra a intolerância, mas é em “O santo inquérito” que o autor esmiúça as artimanhas de quem tem o poder, a tortura moral e psicológica, a imputação de acusações mentirosas sobre quem não tem a menor oportunidade de defesa, enfim – analisa situações universais usando como pano de fundo a Inquisição.
Mesmo voltados para momentos históricos até certo ponto distantes do período em que foram lançadas as peças, Arthur Miller e Dias Gomes deixavam claro para o leitor ou espectador mais atento que estavam falando, sim, dos dias atuais. E a atualidade dos textos é tanta que, nos dias de hoje, ainda possuem a mesma força e conseguem servir como reflexão para fatos que nos movem. Ou não seriam os dias de hoje o tempo em que refloresce a intolerância – desde a perseguição religiosa até o preconceito por orientação sexual, política ou por raça e a volta de minorias nazi-fascistas e ditadores populistas em diversos países?
Arthur Miller, quase profeticamente, adiantou em “As bruxas de Salém” a perseguição de que seria vítima, alguns anos mais tarde. Em junho de 1956 o escritor teve que depor no Comitê Parlamentar das Atividades Antiamericanas. Ele fora denunciado pelo cineasta Elia Kazan, seu amigo pessoal, como participante de reuniões do Partido Comunista. No ano seguinte, Miller foi considerado culpado de desobediência ao Congresso, depois de se recusar a entregar os nomes dos membros de um círculo literário suspeito de integrar o Partido Comunista – condenação que foi anulada em 1958 pela Corte de Apelações americana.
Casado à época com o furacão Marilyn Monroe – uma relação que durou apenas cinco anos – Arthur Miller foi uma das milhares de vítimas do chamado Macartismo, o período de maior perseguição ao comunismo nos EUA durante a Guerra Fria. Mesmo já sendo considerado um dos maiores dramaturgos de seu país, autor de peças fundamentais como “A morte do caixeiro viajante” e “Panorama visto da ponte”, foi investigado de forma agressiva e, em última instância, condenado apenas por não compactuar com a forma de pensamento vigente à época. É o caso clássico de – “se não está conosco, está contra nós”.
Dias Gomes, se não foi profético, certamente refletiu o que aconteceu no Brasil a partir do golpe militar, que aconteceu dois anos antes do lançamento de “O santo inquérito”. O regime de exceção que havia se instalado, cerceando as instituições democráticas e já dando mostras da perseguição a pessoas do meio acadêmico, jornalístico, artístico e político, bem como a violência física, moral e psicológica a que eram submetidos os chamados “subversivos”, são transpostos para o palco, numa forma brechetniana, a partir do inquérito de que é vítima Branca Dias, acusada de judaísmo e heresia durante a Inquisição no Brasil.
Assim como Miller, Dias Gomes também gozava de prestígio nacional como dramaturgo e já havia escrito algumas de suas peças mais importantes, como “Pé de Cabra”, “O pagador de promessas” (levada ao cinema em 1960) e “O berço do herói” (1963), além de ter transposto para o rádio-teatro cerca de 500 peças do teatro universal, em vinte anos de trabalho. Mesmo assim, foi perseguido como integrante do Partido Comunista e censurado como artista, durante todo o regime militar. A inocência e a pureza de espírito de Branca Dias, que tem suas palavras distorcidas pelos seus acusadores, eram a resposta do dramaturgo aos inquisidores de plantão nos anos 60.
No fim, como parece sempre acontecer, aos períodos de intolerância seguem-se períodos de maior liberdade de pensamento – até que uma nova onda de obscurantismo tome o poder. A questão é identificar quando os períodos obscuros estão se instalando na vida das pessoas e da sociedade, como nuvens de tempestade. Os sinais nem sempre são visíveis, mas são perceptíveis. Quando pessoas são espancadas na rua porque são ou parecem ser homossexuais, quando jornalistas são mortos porque estão fazendo seu trabalho de chegar ao fundo do poço da notícia, quando pessoas são afastadas de suas funções ou preteridas em vagas de emprego porque não são da mesma raça ou não comungam da mesma religião, forma de pensamento ou orientação sexual, é sinal que os inquisidores de plantão chegaram de novo ao poder.
(Direitos reservados.)