A FORÇA DE UMA PAIXÃO - CRÔNICAS HISTÓRICAS
Meu Deus, acalmai esta chuva. Grito há horas pedindo o fim desta tormenta que me atormenta o corpo e a alma. Sinto que a vida vai me deixando enquanto eu fico aqui deitada neste chão a esperar o que não sei se virá. Aqui no Rio Grande do Sul um frio intenso chega junto com esta chuva e me tira o sossego. Na verdade nem temo por mim, mas sim pelo meu pequeno Menotti, ainda com poucos dias e enfrentando já a fúria desse exército que não admite que pessoas pensem de forma diferente e por isso perseguem aqueles que querem simplesmente um pouco de liberdade. Por mim até que sou mulher forte e destemida, mas meu filho me faz ser uma mulher fraca na alma e por demais zelosa, a ponto de ficar pasmada com qualquer experiência ou possibilidade de que ele sofra.
A primavera chegou intensamente fria e com chuva. Foi preciso coragem, e não somente pelo tempo ruim, mas por eu estar ainda com as dores do parto e com um filho tão frágil a enfrentar tantos percalços na vida. Já se vão quatro dias aqui estendida sem saber se meu amado me encontrará. Meu Deus, dai-me forças para suportar o frio e as dores que sinto neste bosque, tão perto de casa, mas tão distante devido às circunstâncias de perseguição.
Aqui neste lugar inóspito e sem saber por onde vou, fico voltando à vida e ao passado e, como não há muito o que pensar, medito sobre mim mesmo enquanto espero, aguardo e torço para que meu filho tenha um futuro melhor e um lugar melhor para viver. Aqueço-o entre meus braços molhados e gélidos, tentando quase em vão fazer com que ele não se resfrie. Meu peito ainda possui um pouco dessa seiva nutritiva que o alimenta. Consigo ainda, mesmo fraca, prover meu filho da sua necessidade, embora me sinta cada vez mais desgastada pelo tempo, pela falta de água e pela fome que me atinge. Sou toda dele aqui neste lugar e neste momento. Aqui eu não existo, eu continuo respirando para que ele viva. Seus olhinhos brilhando dão-me alento e me acalantam nesse momento trágico.
Sei que Giuseppe esta à minha procura. Ele há de chegar. Hei de vê-lo chegando com seu cavalo majestoso como a salvar a linda princesa perdida nas garras do dragão. Aqui, as noites são demasiadamente grandes e severas com uma mulher em meu estado. Sinto dores no corpo e não consigo me levantar daqui. Guardo minhas energias para Menotti, para que eu não me destrua e assim ele sobreviva.
Meu coração ainda bate forte, palpita insistentemente desde a fuga magnífica de quatro dias atrás. O exército todo cercando nossa casa, querendo nos encarcerar, e minha experiência de mulher guerreira me fez conseguir sair correndo a cavalo e fugir para esta mata. Queria ter visto o rosto dos soldados. Devem ter ficado com tanta ira, que provavelmente nem casa temos mais. É o preço que pagamos pela nossa ousadia de sonhar com uma república livre.
Minha terra revirava em revoluções e meu mundo também. Tantas dificuldades e o casamento forçado para sobreviver e para não virar mulher mal falada ou sem homem. Eu nunca quis me casar com Duarte, não o amava e não era minha intenção me unir em matrimônio com alguém. Ainda bem que ele me deixou. Ele perdeu. Apesar de não amá-lo eu cuidava dele e estava disposta a viver honestamente com ele. Fico lembrando seus olhos, no momento em que nos conhecemos ainda em Laguna, minha terra natal. Giuseppe olhou fixamente em minha direção, e a paixão deixou-se fluir de dentro de mim. Abandonada pelo marido e convivendo já com o escândalo da situação em que vivia, sempre amargurada e rejeitada, não me preocupei com pudores sociais e parti com esse homem. A força de uma paixão me transformou em guerrilheira ao lado dele, lutando pela nossa República Rio-Grandense e nos amando loucamente. Gostaria de poder me casar com ele, mas ainda não posso enquanto não romper os laços com meu desaparecido marido.
Ah que vida louca eu tive até aqui! Casei-me sem querer, abandonada, me entrego ao homem que soube me conquistar pelo olhar. Aqui nesta situação já sinto falta dos cavalos que juntos montamos nas batalhas e lutas incontáveis que travamos por esse sul do Brasil, agora independente. Ousei sonhar junto com ele os sonhos que a vida me negou. Permiti-me voar por horizontes jamais imaginados, e se ele quiser retornar à Europa, irei com ele sem voltar para trás meus olhos, embora ame meu país.
Enquanto espero uma salvação para nós, principalmente para meu filho, fico lembrando das fugas que enfrentei na vida e imaginando quantas outras terei que enfrentar, e confesso, quero possuir ainda muitos desafios. Sinto necessidade de reagir e abandonar esse lugar, tentar conseguir um abrigo e garantir melhores cuidados para meu bebê. Essa fuga dos soldados foi alucinante, mas me lembrou o dia em que consegui enganar até mesmo o comandante do exército imperial. Fingi a necessidade de buscar o corpo de meu marido e consegui me desvencilhar completamente dos soldados que, ficaram boquiabertos com minha escapada. Corri enquanto pude e consegui atravessar lugares complicados até mesmo para soldados experientes. Sou mesmo uma mulher forte e sou corajosa. E é essa coragem que me faz aqui ter esperança de sobrevivência.
Também não foram poucas as fugas que enfrentei desde a morte de meu pai e o trabalho com minha mãe, até o fatídico casamento sem amor. Fui fugindo até de mim mesma, numa contradição visível com a coragem que hoje ostento na prática e no meu nome. A coragem é algo que esta na alma de qualquer mulher. Não sou diferente de ninguém. Apenas amo loucamente e me entrego a essa paixão, não como sinal de fraqueza, mas como alguém que é capaz de canalizar essa energia para impulsionar nossa vida, que de difícil só existe a possibilidade. Afinal, até mesmo a lutadora conhecida por Anita Garibaldi é uma mulher, por trás da historia, Ana Maria de Jesus Ribeiro.
A chuva cessou, mas continuo deitada aqui aguardando, enquanto ouço um trotar de cavalos. Tremo o corpo por dentro, não por mim, por ele. A apreensão vai tomando conta de mim enquanto tento reunir forças para me levantar em fuga. Não é possível. Sinto-me fraca e, além do mais, o barulho esta próximo demais para eu conseguir fugir sem ser notada. Sinto algo a enfrentar. Abro bem os olhos e fico atenta. Vejo o cavalo de relance, um homem montado, sozinho. Ainda tenho forças para limpar os olhos lacrimejantes e vermelhos de tanto sono para observar quem chega. Mal consigo me conter: é ele. Meu Giuseppe vem ao meu encontro. Há uma emoção própria dos fracos, mas que se torna forte quando estamos fragilizados pela emoção. Um abraço longo sela nosso reencontro. Estamos salvos. Juntos aquecemos nossa criança e continuamos no cavalo, indo rumo a uma nova batalha, há um novo sonho, há uma nova liberdade.
Ainda há muito o que fazer. Não temos moradia fixa, mas nem isso importa. Somos soldados e estaremos sempre nos lugares onde de nós precisarem. Um sorriso mais intenso do que o sol após um dia chuvoso sai de meu rosto em direção ao silêncio de nosso filho. O horizonte se apresente à nossa frente, longe de se ver nestes pampas gaúchos. Vamos indo em direção a outro combate. Esse foi vencido, graças a Deus. Volto agradecida, pra onde não sei, mas para frente. Juntos. Sempre.