EM TERRAS DISTANTES - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Meus olhos apreensivos se voltam para trás. Vislumbro os pampas gaúchos mais uma única vez e sigo agora em frente, sem deixar a alma retroceder e perder-se na emoção frágil que alimenta em mim um sentimento de revolta que não quero nutrir. De olhos fechados posso ver melhor o que fica no passado. Deixo o Brasil com uma dor terrível, que rasga por dentro do espírito e me faz sentir um ser torturado com a mais cruel das violências: a que atinge a alma e a dignidade da pessoa. Como é possível abandonar sua própria terra?

Para depois ficam amigos e irmãos que não posso trazer comigo. Deixo também as imagens do povo brasileiro e trago deles a esperança de ver um país melhor. Acompanha-me a certeza da decisão tomada de forma correta. Muitos me julgam um covarde. Fugir não é covardia. Reconheço a realidade e a gravidade dos fatos, que enfim, superior às minhas forças de reação, deixam-me imobilizados. Seria uma loucura revidar. A morte de meus conterrâneos não vale o risco. Uma guerra civil é o último evento que um presidente poderia deixar como herança a seu povo. Tenho em mim a certeza de que deixo um país melhor, apesar das atuais circunstâncias. Fiz todo o possível para manter o regime democrático, inclusive saindo de cena sem resistir com uso de armas, para evitar derramamento de sangue.

Reabro os olhos e paro um instante a observar pela janela. Viro-me para trás e ainda vejo a fronteira do Brasil. Contemplo-a como se fosse a última vez, tal qual um homem apaixonado admira a esposa antes do sepultamento. Assim me sinto neste momento. Um pesar inebria e embriaga o coração desse homem que ousou tentar transformar o país num lugar melhor para todos os pobres e esquecidos. Parece que ouço o barulho da multidão a gritar meu nome no comício da Central, num coro de cento e cinquenta mil pessoas demonstrando apoio incondicional às nossas reformas. Faríamos um outro Brasil, além dos simples sonhos. Estava tudo pronto, a concretização era uma questão de tempo. Reforma agrária, educacional, salário mínimo digno para os trabalhadores...

Admirando ao longe o Brasil, além da fronteira do Uruguai, onde estou para preservar minha vida e evitar a guerra civil, vejo em minha mente os aplausos efusivos e os gritos de reformas já. O povo estava do meu lado, e são causa de pavor para muitos, principalmente para a elite econômica, que via em mim um aliado dos comunistas. Eu nunca fui comunista e os militares sabiam disso. A resistência inicial, montada no sul com o apoio dos meus fiéis generais não seria suficiente, pois até mesmo os Estados Unidos já estavam apoiando a suposta legitimidade do novo governo, quando declararam vaga a cadeira da presidência. Não sei se poderia ter evitado o golpe. Declarar-me contra tudo o que penso e acovardar-me no medo não seria uma saída honrosa. Teria me tornado um boneco. Isso não.

Trago as lições de meu velho pai e de Getúlio, que, aliás, tornou-se um grande amigo desde a juventude e me ensinou os primeiros passos na vida política. Soube eu filtrar as atitudes às vezes destemperadas do nosso ex presidente, e fui construindo meu próprio caminho. Ministro, deputado, conselheiro... fui dando meus passos e construindo-me a mim mesmo, que ora, saio da cena local para continuar vivo na memória do meu povo. Olhando e admirando esse país, ainda sinto o palpitar frenético do coração dos últimos acontecimentos. A capital fechada, eu acuado, sem acesso a telefones e transporte, tentando resistir ao irresistível, e lutar contra armas muito mais poderosas do que as que eu dispunha. Mal tive tempo de viajar às pressas e às escondidas. Nem mesmo tive tempo de sair com Thereza minha esposa, certamente aflita e amedrontada. O grito das multidões ecoará em todo o território nacional e irá levantar a resistência partindo do povo, que certamente não vai se calar diante das arbitrariedades de um governo ilegítimo e truculento.

Sigo meu caminho já com saudade do Brasil. Escolhi por ora o Uruguai pra viver. Daqui fico próximo de minha terra e do meu Rio Grande do Sul. Já me sinto deprimido e com as forças me faltando nestes momentos trágicos. Mas aguardo o desenrolar dos fatos, pois nada melhor que um dia após o outro. Fico na expectativa e na esperança de que a situação possa tomar outros rumos. Rogo a Deus que não venha ninguém perder a vida por minha causa. É meu último desejo.

A experiência do exílio já esta sendo por demais dolorosa mesmo antes do começo. Tenho aqui condições de sobreviver tranquilamente, mas a saudade será uma eterna companhia, inconsolável a este coração amante de um chimarrão e de uma boa conversa. Sentirei falta da fala do português pelas ruas e fico condenado a ser um estrangeiro, porém grato pela atenção desse país amigo que me recebe juntamente com minha família, como se daqui fôssemos. Mas impossível não estar nostálgico e ansioso por voltar ao meu país. Já instalado, ainda sinto um frio intenso neste fim de outono. Um frio que é mais intenso que a baixa temperatura cotidiana deste lugar. Com as baixas temperaturas eu já estou acostumado, desde São Borja, embora tenha convivido com o calor tropical do Rio. O frio aqui é maior mesmo na alma. Desprovida do aquecimento generoso das terras brasileiras, faz-me tremer por dentro num movimento inquieto de lembranças tantas. Aqui realmente até os pássaros não gorjeiam como no Brasil. Tudo é saudade já. Queria ir agora mesmo de volta à minha terra.

Sou um prisioneiro também dentro de minha consciência. Apesar de acreditar verdadeiramente que fiz o que devia ter sido feito, penso na minha responsabilidade pelos rumos do país e fico pensando se tudo não poderia ter sido diferente. A história, entretanto, é imprevisível e é algo complexo lidar com possibilidades e suposições. Caio, mas de pé.

Parece que ainda vejo os momentos finais no Brasil. A reunião com os sargentos e meu apoio ao voto deles, como de todos os brasileiros. Foi um duro golpe naqueles que odeiam a liberdade e temem pessoas simples. O golpe assolou a vida do país e vai condená-lo a uma sanguinária ditadura. Apesar da dor que sinto na alma, ainda assim entendo que estou melhor do que aqueles que estão sendo duramente reprimidos e torturados.

Não quero passar para a história apenas como um homem fugitivo. Daqui do exílio sempre em contato com o Brasil, com a situação política e sou solidário a tantos que agora sofrem as mazelas desse regime brutal. Parece que tudo se estenderá para além do imaginado. Nem sei se morto poderei retornar ao meu país. É possível que até meu corpo inerte provoque medo nos militares, talvez de um acúmulo de pessoas sob impacto emocional. Meu nome, João Belchior Marques Goulart é capaz de provocar a tal revolução que eles tanto temem.

Passo meus dias a curtir a saudade e na espera sempre de notícias do outro lado da fronteira. Meus amigos sempre me deixam a par de tudo e daqui, correspondendo-me com eles e falando aos jornalistas, me sinto um pouco dentro do Brasil e impetrado na alma de nossa gente. Por ora, resta apreciar o vento que vem do norte. É um vento que vem de lá, como que a me oferecer uma carícia brasileira. Meus filhos que são minha alegria. Ando sentindo uma terrível solidão e tento lidar com ela conversando com meus companheiros que passam um tempo também no exílio. Sinto-me honrado em ter sido homem o suficiente para reconhecer a hora da retirada, assim como saberei partir quando necessário.

Passo os dias a pensar na gente do Brasil, a ver meus filhos crescerem e a dedicação de minha esposa tão companheira com eles. Tento cuidar melhor de minha saúde para conseguir forças para superar as dificuldades inúmeras que se apresentam. Exilei-me também da vida social. Fico aqui, a pensar apenas na volta e em como posso contribuir para meu país. Em terras distantes, assim como distante esta minha alma da agitação de meu povo, não há muito que desenvolver mesmo. Nutro sempre a esperança. Nem tudo esta perdido. Homens morrem e outros nascem, e cada vida nova no Brasil é a esperança de que meu sonho e o sonho dos brasileiros um dia vai se concretizar. Com certeza.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 28/07/2011
Reeditado em 30/07/2011
Código do texto: T3124466
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