SONHANDO ALTO - CRÔNICAS HISTÓRICAS
Leio a data: 08 de junho de 1964. Na primeira capa do jornal a notícia que pretendia matar minha dignidade e sepultar tudo aquilo que signifiquei e que plantei neste chão. Mas não vão conseguir. Um sonho é como um pássaro no alto das montanhas, em absoluta liberdade de planar por sobre tudo e todos, e lançar lá do alto um olhar completo, numa visão panorâmica de todo um mundo ao seu redor. Sinto um engasgo na garganta e falta-me uma palavra para expressar meu sentimento. Apenas isso. Mas nada conseguirá me tirar a esperança de novamente estar conduzindo esta nação rumo a um progresso ainda maior e ainda mais sólido e duradouro.
Nem mesmo quando eu era apenas um amador nos gramados do meu querido América Futebol Clube eu conheci a derrota dos sonhos. Ainda bem que meus sonhos tomaram outros rumos, pois no futebol, eu realmente não teria sido promissor. Fui jogar em outros gramados. Alguns eram verdinhos e viçosos, já outros, ralos, parcos, cinzentos. Joguei em gramados de sangue, feridas e dores. Sou médico, minha profissão de coração, e como capitão da polícia de Minas Gerais, tive a oportunidade de começar a prestar um grande serviço à pátria. Da minha pacata Diamantina, das serestas e dos casarões silenciosos, fui para a Serra da Mantiqueira servir às tropas da revolução constitucionalista e curar feridas, amenizar dores, medicar corpos dilacerados pela bestialidade da guerra. Olhando estas letras garrafais da manchete de primeira página, me passa um filme das lutas e dificuldades que enfrentei naqueles ambientes hostis.
Não pense você que me imagino merecedor de um tratamento especial, por ter sido um homem importante, como dizem. Na verdade sou tão importante como qualquer outro brasileiro, que, como eu, doa sua vida a seu jeito pelo bem de todos. Mas daí a virar notícia degradante e humilhante já é demais. Eu não sou bandido nem criminoso. Talvez um excessivo sonhador e um progressista confesso, um realizador de sonhos impossíveis para muitos. Sei que sou ousado, e talvez a ousadia não seja bem vista nas atuais circunstâncias pelas quais passa o país. Mas isso também não dá a ninguém o direito de expurgar um cidadão de bem, da vida de uma nação, ainda mais quando ainda sinto pulsar em mim o vigor da juventude e o idealismo dos meninos que começam a mudar a voz.
Olho para o fundo, abaixo a notícia e deixo minha mente voltar às montanhas da minha querida cidade natal. Vejo o moleque sonhador nas ruas, imaginando assombrações, recebendo aulas particulares de mamãe, de quem herdei meu sangue cigano e a capacidade de prever que meus sonhos não eram utópicos, apesar de absurdamente grandes. Recordo os bolinhos, os amigos da esquina, o futebol na ladeira e os machucados inúmeros nos dedos dos pés provocados pelas pedras enormes que calçam as ruas da cidade das serestas. Sem os sonhos e a ousadia ainda estaríamos na idade da pedra e sem os avanços. Trago à memória minha querida Belo Horizonte, que pude governar e inovar com as largas e polêmicas avenidas, a Lagoa e as obras do Niemayer. Tanto feito, tanto dito do povo e tanto silêncio depois de tudo pronto. Provei que o que se pretende pode ser realizado.
Sinto na alma um profundo pesar de não ver mais as instituições democráticas preservadas, o que fiz com tanto afinco e esforço. A notícia de hoje é sobre mim, amanhã será sobre outro, e assim parece que haverá longos anos de desrespeito à democracia e ao povo brasileiro. Hoje, apesar de sempre otimista, diminuí meu sorriso consideravelmente. Sei que ao me levantar dessa mesa e tomar um cafezinho já poderei esboçar um sorriso costumeiro. Não vou andar de cabeça baixa ou às escuras. Não envergonho de nada na minha vida. Trarei, talvez por hoje não, mas meu sorriso largo de volta, estampado em outros jornais de outrora, constrastando com essa capa de jornal. Lembro do quanto eu fui feliz nos ares do Brasil. Na verdade morei muito tempo no avião do Rio ao planalto central onde plantei meu maior sonho e despertei esse gigante país que dormia na vagareza de seu progresso e na lentidão de seu povo a procurar uma ocupação. Brasília, um sonho acabado, realizado, concretizado no planalto central, no coração do Brasil e do povo brasileiro, impregnado no espírito empreender dessa gente que comigo aprendeu a dar valor aos sonhos e ao percebê-los possíveis, mesmo diante de tantas adversidades. Brasília me ensinou a não desistir nunca. Do nada, ali esta uma maravilha da arquitetura, uma esplendorosa obra do homem, superando limites e vencendo os obstáculos que não foram poucos. Recordo-me do catetinho, dos operários que apertaram minhas mãos em agradecimento e em reconhecimento. Brasília é um sinal vivo da minha ousadia, da minha teimosia e da minha coragem. Não é que eu queira me colocar acima de ninguém, mas construir uma enorme cidade, cheia de perspectivas e planos, inebriada do desejo coletivo de um povo que ousou sonhar comigo, é coisa para quem tem a capacidade de sonhar e levantar o espírito de multidões. Lembro aqui meu velho amigo Chico Xavier, conselheiro, homem de luz, que tantos ensinamentos me proporcionou, nunca me negando um conselho. De sua humilde casa, sempre mostrou a mim os caminhos e me acalmou nos momentos difíceis e duvidosos na construção da cidade sonhada por Dom Bosco, de onde uma nova civilização haveria de florescer. Brasília é a cidade construída pelo povo do Brasil, sonhada e arquitetada nas mentes e nas palavras sempre encorajadoras dos amigos e conselheiros que tive ao longo do tempo.
Um vento gelado passa por entre as portas e assola-me a alma. Por mais otimista que eu sou não consigo esconder a decepção. Não sei se seria esta a palavra adequada, mas sinto-me injustiçado depois de ter dedicado a vida ao Brasil. O vento que penetra pelas portas e janelas, me permite relembrar as dificuldades para assumir a presidência do Brasil. Relembro apoios tantos que permitiram que meus sonhos pudessem hoje ser concreto armado, estradas cortando o Brasil, automóveis transportando pessoas de vários lugares e um povo com dignidade, que acredita em si mesmo. Subitamente, penso em sair daqui, em me exilar voluntariamente até que cesse esse estado de exceção. Não sou mais senador da república que ajudei a recriar. Não sou mais bem vindo. Saio para permanecer, descanso para retomar forças, durmo para poder sonhar.
Respiro fundo e encaro uma vez última a manchete do Jornal Ultima Hora, que afirma que muitos cidadãos perderam seus direitos e em letras de cartaz, “Cassado JK”. Sou eu mesmo, Juscelino Kubitschek de Oliveira, que soube guardar a constituição e zelar pelo bom andamento da democracia brasileira. O homem que mais ousou e ensinou a povo a curar feridas da alma e tumores malignos que os impediam de pensar seu futuro. Vejo-me agora algemado em meus pensamentos e silenciado na alma. Mas ao me levantar daqui, guardo o jornal, porque amanhã essa será uma notícia de ontem, e a vida vai continuar seguindo seu rumo normal. Viverei cada dia como um pássaro que voa e cruza os céus sem a preocupação de onde vai pousar. Como quando construí a capital juntamente com toda a nação, quero transitar por entre as pessoas com meu largo sorriso no rosto que só posso emitir se estiver dentro de minha terra amada.
Levanto-me e saio rua afora. Antes de entrar no carro me chega uma senhora me chamando de seu Nonô. Aperto-lhe a mão e deixo-me contaminar pelo seu sorriso. Ela não se contenta e me abraça. Meu sorriso esta de volta. Não consigo não ser assim. E assim, quero continuar sorrindo, vivendo o melhor de mim, apesar das circunstâncias, das torturas, das censuras, dos jornais, das adversidades, das cassações, das barbaridades... Sempre em frente, o progresso continuará, os sonhos não morrem jamais, um peixe vivo não vive fora da água fria. Pelo menos eu, não.