VAMOS MARIA ISABEL

Menina rota, cabelos desgrenhados ao vento, estática figura esperando a condução. Não demonstrava ter mais que dez primaveras, mas apresentava a convicção de quem estava ali por algum motivo. Dedos nus que se assentavam sobre grossas tiras de couro que mal cobriam o calcanhar. E as vestes que a cobriam demonstravam que a muito a faziam visto o estado que se encontravam. A sua meiga face era emoldura por espessa cabeleira tal leão ao vento e seus lábios ressecados vez ou outra estampavam um sorriso que não encobria falhas, sorriso esse solto discretamente ao ver passar por ali um vendedor de balões. A brancura da face e os lábios ressequidos só eram interrompidos por um barato brilho de morango passado por ela, de forma exagerada, nos grossos lábios.

Estaria perdida essa menina? Não creio, sua altivez demonstrava o contrario. Mais por qual motivo estava ali? Figura única que até hoje povoa meus pensamentos. Flor insistente em fresta de concreto. Ela existia ali sozinha. Naquele momento ela se bastava. Única e forte presença só interrompida por brusca pergunta, dessas feitas sem importância tal como quem não se interessa na resposta. __ Tá com fome? Essa pergunta gerou mecânico movimento. De pronto o infante roto estendeu os braços cujas sujas mãozinhas esperavam o alimento desconhecido.

E as mãos que o alimento cedia vinham de uma senhora de traços fortes. Braços brancos onde veias formavam largas avenidas de sangue que era bombeado abaixo do couro cru. Vestes fartas sobre um corpo esguio, forjado certamente em secas itinerantes. Seus cabelos igualmente desalinhos se assemelhavam a longos invernos. __Não desperdice. __Come tudo. Eram as missivas da velha senhora zeladora de grande sacola onde a água e os biscoitos eram seu tesouro para o momento. Figura anciã retirada de um antigo conto. E sua face? Meu Deus sua face, de mil agulhas que engrolavam um ar cansado.

Não pude deixar de notar que outra menina figurava também ao lado. Muito parecida com a primeira senão pelo cabelo aprisionado em longas tranças grossas. Mais vivaz e serena distanciava, eu creio, dois anos da irmã.

No decorrer de minhas observações a condução já se fazia presente e tal como grande centopéia engolia inúmeras pessoas com voracidade até que suas portas se fecharam bruscamente tal panela de gordura que se fecha para evitar o respingo. Eu e o trio presente nos acomodamos de pé entre escassos espaços e logo já fazíamos parte de grande massa de gente que insistia e se apoiavam em pé. Ninguém! Ninguém se prontificou a acomodar a velha e as meninas nas cadeiras sujas e desconfortáveis. A insensibilidade e falta de caridade é clara na massa e os que não demonstravam essa frieza no olhar fechavam os olhos em suposto sono, sono injusto para não se ver o que se passa ao redor.

Desacomodada ela olhava repetidamente para o lado a fim de achar poltrona vaga ou não perder o ponto de parada. Apoiava se com uma das mãos ao mastro que lhe passava parcial segurança aos solavancos. A mão que se mantinha livre de pronto fora disputada entre as meninas como porto seguro, restando à outra agarrar se ao vestido tal como mulher doente a vestes santas. E a cada parada a besta voraz engolia mais gente que se acomodava não sei onde.

Nesse meio tempo inúmeros mercadores e pedintes passaram na condução. Lá faziam discursos afetivos e mostravam gangrenas severas que comoviam alguns a darem escassas moedas. Houve momentos que mais que loja se tornou departamentos. Era possível encontrar desde escovas de dente a agulhas e pilhas. Tudo a venda. Pessoas que já haviam sofrido acidentes diversos e passavam por tratamentos sofisticados e caríssimos, estampavam receitas e atestados por certo a convencer transeunte desatento. Violeiros itinerantes, pregadores, meninos de rua, mulheres da vida, cegos e aleijados pululavam o recinto.

Embora nossos corpos estivessem unidos naquela massa de forma que nem sequer cair podíamos, nossas almas se encontravam bem afastadas. Cada um ali tinha seu próprio mundinho e não vislumbrava o outro por perto. Éramos galhos secos e ali víamos galhos secos. No imediatismo do dia-a-dia nos tornamos individualistas e sobre maneira abrimos mão dessa condição egoísta alegando independência desmedida e privacidade compulsória. Nossas vidas talvez sejam caminhos individuais como disse Nietzsche mais tendo a pensar como Gandhi, não que chegue aos pés do que foi esse homem mais me conforta sua mensagem quando ele diz não deixar ninguém passar por sua mente com os pés sujos. Muitos ali não davam a mínima aos pés alheios que diria ao coração.

E Chegada a hora da partida. A descomunal besta qual lagarta regurgitava os viventes. Nesse instante tudo parou diante de anjo roto. Estática, literalmente empacou na saída. Que houvera com tal menina, não ia pra frente nem ia para trás e já se ouviam os outros reclamarem por passagem. Que momento louco e altista vivenciava a garota? Que a teria assustado ou impedido o movimento? Como vazo vazio ali ficou, e nada a fez seguir, nem mesmo os berros de sua vó ou mãe não creio. __Vamos Maria Isabel! _Vamo bora! __Vamo diabo... Mais nada adiantou estática estava parada ali ficou. E a velha que já nervosa preocupou se mais ainda ao ver que a outra já se encontrava do lado de fora do ônibus. Que fazer diante de animal afugentado? Sentiu ânsia de bater, de xingar e até mesmo de deixa La. Mais não. A olhava-a com tal voracidade que haveria de movê-la com o olhar. A menina que agora sei Maria Isabel não atendia as suplicas e os que presenciaram ao invés de ajudar de alguma forma, soltavam prolongados risos diante da velha nervosa e a criança empacada. Em meio a tantas gargalhadas a velha, como fera que recolhe o filhote, fincou seus dedos, tridente certeiro, no ninho da menina e a tirou dali pelos cabelos.

É certo que as pessoas ao saírem da condução tomam caminhos distintos e que não deveria me ocupar do destino de ninguém ali presente, mas o estranho trio me chamara por demais a atenção. A diferença de idade entre as três me deixava de certo modo muito preocupado com o destino das crianças e o que acabara de acontecer provava que a senhora tinha controle sobre a criação e que era presença fundamental na vida das meninas. Pesava me pensar na falta que a anciã faria. Quem haveria de chamar lhe Maria Isabel? Até quando teria ao seu lado tão velado anjo murcho?