Ciclo do Gago

Foi na feira de domingo que nos conhecemos. Por causa do sol, a procura por proteção aumentava. Um homem chegou na barraquinha. Havia vários chapéus a disposição, uns bem resistentes, outros incrivelmente bonitos e charmosos. Mesmo assim, ele me escolheu, um simples e maleável chapéu de palha. Honestamente, meu modelo há muito estava ultrapassado: hoje em dia, quem é que escolhe abas finas e de cor de burro-quando-foge, se puder ter um daqueles bonés com aba resistente e da cor que mais lhe agrade?

De qualquer jeito, fui escolhido pelo tal homem. Ele não chegou a emitir sequer uma palavra durante o ato da compra. Logo me pôs na cabeça e foi-se embora. Só depois de um bom tempo eu percebi que o homem era gago. Na venda, os chapéus mais badalados eram estocados com cuidado longe da multidão e à sombra dos menos estilosos como eu. Tentei não pensar que a sua incapacidade de falar tivesse feito ele me escolher, afinal se ainda se produzem chapéus de palha, é porque alguém deve gostar de nós, não é?

Meu homem tinha muito cuidado comigo, afinal, era eu quem polia sua imagem. Por ele, eu pegava sol todo dia, protegia-o contra os insistentes pombos que parecem achar que cabeça de homem é banheiro. De tanto me sacrificar, com o tempo minhas linhas foram se espaçando e meus nós foram afrouxando. Já não servia como chapéu, estava mais pra uma peneira.

Não demorou muito para ele me dispensar. Com tantos modelos novos por aí, por que perder tempo com um chapéu, uma peneira, de palha? Me jogou na rua, do lado de um saco de lixo. A dor foi tão grande, que vários fiapos meus se soltaram, fiquei assim mesmo, um horror!

Meu futuro é incerto agora: se algum mendigo me quiser, ele me terá e eu o terei, ou então, quem sabe talvez um artista plástico se encante com a minha história e me exponha em algum museu de classe? Já o futuro de meu homem, por outro lado, é bem previsível: devido a sua gagueira, ele pegará o chapéu que estiver mais perto. E coitado do próximo chapéu! Assim que não mais servir o homem, pode ser que a gente se conheça aqui no lixo.

tartaruguinha
Enviado por tartaruguinha em 21/07/2011
Reeditado em 21/07/2011
Código do texto: T3108430
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