Rosebuds

Rosebud é uma palavra-chave no clássico filme “Cidadão Kane” de Orson Welles. O filme, como um falso documentário, trata da vida de um magnata da imprensa, tipo Roberto Marinho, que construiu um império de comunicação, tornou-se poderosíssimo, fazendo e depondo governos, mas que no fundo tinha mesmo saudade de seu Rosebud, símbolo de sua infância feliz.

Acho que todos nós temos nossos rosebuds. Pedaços de infância e juventude, que, quando nos lembramos fazem nosso coração palpitar de emoção e os olhos encherem-se de lágrimas – em busca do tempo perdido. Talvez uma vontade de ser ingênuo e puro de novo, de se sentir seguro de novo, de saber-se sem preocupações e obrigações de novo. Vontade de voltar ao jardim do éden do útero materno.

Os rosebuds aparecem nas formas mais estranhas, como a primeira bicicleta, ainda tentando aprender a não cair – emprestada do vizinho conhecido, porque para a família ter bicicleta seria um luxo.

Às vezes é o gosto do primeiro chiclete, novidade recém chegada ao Brasil na venda da esquina e que tinha um gosto extraordinário para as papilas virgens de um gurizinho. Anos mais tarde o gosto reaparece sob forma de um chiclete freshmint – era esse o gosto! – que oferecido à companheira merece o desairoso comentário: “Tem gosto de Gelol...” – era isso mesmo, era o gosto de Gelol que o guri procurava.

Houve rosebuds nas matinês de domingo no Cine Capitólio, com as chanchadas da Atlântida (comédias musicais brasileiras, ingênuas e descompromissadas, de baixo orçamento, imitando as comédia de Hollywood), o Oscarito e o Grande Otelo, a beleza da Eliana, o Zé Trindade, com bigodinho salafrário, as músicas de Emilinha Borba – minha favorita em contrapartida com a Marlene.

As histórias precursoras de quadrinhos de “Juca e Chico” – ainda tenho em casa, sem capa. Os livros das Aventuras de Xisto – fascinantes. As aventuras de Arsène Lupin, ladrão de casaca, elegante, sarcástico e irônico, como criado por um bom francês, Maurice Leblanc. Os livros de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs. Eles faziam companhia, levavam-me para viajar, numa época sem televisão e em que a Internet não era nem concebida em ficção.

Importantíssima a criação de uma biblioteca setorial na rua onde morava, que me permitiu acesso aos livros maravilhosos de Monteiro Lobato, onde aprendi mitologia grega e me diverti para valer. Na verdade era a biblioteca do pai do Mário Vieira, cujo tino comercial fazia-o alugar os livros para os vizinhos. Bendito tino.

Existem rosebuds que, encontrados, decepcionam tanto que seria melhor que nunca tivéssemos os encontrado novamente. Envelheceram. Foram falseados pelo tempo e pela memória ávida de emoções verdadeiras.

Mas existem rosebuds-reis. Há um álbum de história em quadrinho que li e desapareceu da minha vida: “Os Dois Mosqueteiros”, onde havia um casal de irmãos adolescentes e um troglodita que era viciado em licor de anis. A tinta do desenho era azul. Esse é o meu rosebud principal, que busco incessantemente, na Internet, nas feiras de gibis. No final da minha vida, já caduco, vou balbuciar para as pessoas: dois mosqueteiros, dois mosqueteiros... e elas vão usar isso como desculpa para justificar meu internamento num asilo geriátrico...