A VIAGEM NOSSA DE CADA DIA

Quando tudo flui no trabalho, consigo tomar o ônibus das 18:10. É um dos sintomas da mesmice da vida, diria um melancólico pensador! Pois digo que começa aí uma deliciosa aventura.

O motorista e o cobrador são sempre os mesmos, o “Seu” Ronaldo e o Jaci, os dois donos de um sorriso do tamanho do mundo: enorme! Nós, os passageiros, somos quase sempre os mesmos. Parece tudo combinado, sentamo-nos quase sempre nos mesmos lugares, somos cumprimentados pelo nosso próprio nome. “Seu” Ronaldo faz questão de saber e pergunta com tanta simpatia, que quase ninguém se recusa dizer. Nós que já o conhecemos, ficamos esperando a reação do passageiro novato. Se disser o nome, todos sorrimos felizes.

No começo da viagem as coisas correm do mesmo jeito: é gente entrando, cumprimentando, sendo cumprimentada, sempre jovialmente de ambas as partes.

Depois começa a diferença: “Seu” Ronaldo vai perguntando como foi o dia de cada um.

Quer saber do chefe bravo daquela menina tímida. Dirigindo aquele enorme e cheio veículo ele vai falando alto e em bom tom o que ela deve fazer com o chefe, imaginando travessuras.

E por aí vai.

Mexe com a estudante, pergunta a uma senhora para quando vai ganhar nenê. Ela se atrapalha, fica encabulada, mas ri. Todos nós rimos. Vamos enfeitar o ônibus quando vier com o nenê, viu? diz ele.

Pergunta a outro se conseguiu aumento. Não espera a resposta. Ele sabe qual vai ser. E dá risada! Discute um pouco de futebol, um pouquinho só, com o moço de camisa preta e vermelha!

Até dos sisudos, carrancudos, emburrados, tristes ou acabrunhados ele consegue tirar um sorriso nem que seja de leve e pelo espelho interno vê o sorriso e fica feliz da vida por isso.

Já o chamaram de louco, meio tantã, abusado, mas ninguém o afronta ou critica abertamente. Tem sempre alguém para defendê-lo e quem o critica fica sem graça. Mais uns dias, entra no clima e também o defende dos novatos.

Quando pára nos sinais, tira ele não sei de onde um pacote de bolachas e o oferece a todos; cada um de nós pega uma só bolacha e passa para frente o pacote. À medida que o pacote caminha de mão em mão, ele vai fazendo um comentário diferente:

- ‘Tava com fome? Ô gordo, deixa a bolacha pra menina, meu! Deixa a mamãezinha comer também, precisa comer por dois!

Como não pode sair de seu lugar, ele ensina aos novos que cada um tem que ir passando aquele pacote até acabar. A gente seleciona a quem passar naturalmente.

Sentimo-nos num ônibus de turismo sendo adulados, queridos, alvos de cortesias, de brincadeiras, de um bom humor sem fim. Para completar, ele também cantarola e pede que cantemos fazendo o coro! Fico só escutando... Se for música sertaneja, tem sempre quem o acompanhe.

O cobrador é de uma boa vontade que dá gosto ver. De vez em quando ele pega uma sacola, um pacote, uma criança pequena de quem está passando pela catraca e manda alguém segurar para ajudar a pessoa. E nem pergunta se querem fazer aquilo. Eu sei que ele tem certeza que ninguém vai recusar. Ninguém se atreveria, todos fazemos parte dos felizes passageiros das 18:10. Ele chega até a pedir que alguém distraído se levante para dar lugar a alguma mamãe com nenê de colo. Idoso, então, não fica de pé.

Nesse clima de intimidade espontânea, conversamos e nos interessamos pela vida de cada um, tornamo-nos confidentes, amigos de poucos minutos que não julgam, só escutam. Contam-se casos do dia, algum incidente no trabalho, a gripe, a roupa nova, a recente liquidação de uma loja, desabafam-se amores sonhados ou perdidos e rimos, rimos muito, de cada coisa, de pouca coisa, de tudo enfim.

Ele diz que no verão vai distribuir suco gelado e que não trouxe chocolate quente agora no frio, porque não tem garrafa grande. Acreditamos nisso; não duvido nada que qualquer dia a tal garrafa aparece! Esperamos tudo dele.

Chegou minha hora de descer. Por hábito, vou me dirigindo à porta; todos se despedem de mim: se cuide, até amanhã, tiau, vai com Deus, Deus te acompanhe, amanhã a gente acaba a prosa e por aí a fora...

Às vezes tenho ganas de ir até ao ponto final para gozar mais da companhia dessa gente simples, para ter mais chance de conhecer pessoas, de partilhar aqueles sorrisos, aquelas gentilezas de gente solidária e simpática. Talvez seja a única alegria do dia dessa gente.

Depois que desço, “Seu” Ronaldo engata a primeira marcha no ônibus e espera até que eu chegue na direção da porta dianteira para me dar um aceno de mão, um - vai com Deus - de boca cheia e aquele sorriso! Só então, arranca devagar.

Fico olhando o ônibus ir se distanciando, sem pressa, tanto eu como ele, de longe, até que sua imensa figura some na descida da avenida. Vou mais feliz pra casa, parece até que o cansaço sai um pouco do meu corpo.

É assim todo dia da semana... Até que...

Outro dia, entrei no ônibus e o motorista era outro. Perguntei ao Jaci por ele. Foi despedido. Fiquei calada, sem reação.

Porque?! O Jaci não soube explicar.

Um a um os companheiros foram entrando nos pontos, perguntavam por ele. Havia um clima de estupefação no ar! Não mais aquele outro clima.

Às vezes um entrava e perguntava para o motorista novo:

- Quem é você?!

- Cadê “seu” Ronaldo?!

- Sou o motorista novo da linha.

Alguém completou:

- Eu, heim?

O Jaci tentou amenizar a surpresa e nos deu um punhado de balas. Ganhamos as balas, mas já não eram tão doces. Tudo mudou, perguntamos pelo dia de cada um, mas sem os comentários jocosos do “seu” Ronaldo, as respostas não faziam mais sentido; acho que o tal chefe continua brigando com a mocinha e a estudante está triste! Nunca mais vi a moça grávida. Será que ganhou nenê? Cheguei no meu ponto tão cansada como entrei.

Não esperei parada que o ônibus sumisse na descida da avenida. Fui andando devagarzinho. O Jaci ainda me acenou com a mão. Retribui, contudo havia um nó doloroso na minha garganta.

Quase já não tomo mais esse ônibus. Acredito até que nem faço questão de terminar o trabalho depressa e sair correndo para o ônibus das 18:10.

Hoje consegui. O Jaci está mais magro. Disse que teve pneumonia, ficou vários dias de licença. Deu notícias dos outros. Contou que viu no bairro a senhora (ex-grávida) com um nenê no colo, mas de dentro do ônibus, não deu para perguntar se era menino ou menina. Ainda disse que a manta do nenê era amarela. Só que isso não ajuda muito.

A estudante estava quieta, a recepcionista tímida apenas sorriu de leve. Aquele senhor recebeu um pequeno aumento, porém, parece que não tinha o sabor de vitória. Não tinha o amigo para vibrar com ele. O flamenguista continua com seu uniforme preto-vermelho, sem poder discutir um pouco, um pouquinho só. Nunca mais tivemos notícia do “seu” Ronaldo. O Jaci não sabe para onde ele foi. Com certeza, em outra empresa, ele continua distribuindo alegria.

Nossa viagem acabou? Sobrou alguma coisa? Ah! sim, sobrou:

Ele nos ensinou como fazer de uma monótona mesmice da vida uma constante e deliciosa novidade; ele nos tirava, com seu bom-humor, da mediocridade de uma viagem de ônibus urbano, cheio, lotado de pessoas esgotadas, às vezes amarguradas, talvez também problemáticas. Éramos por alguns minutos turistas em uma terra bonita e iluminada, felizes e isolados da miséria do mundo. Olha, “seu” Ronaldo, nunca, jamais, em tempo algum vou esquecer você.

Obrigada pela viagem nossa daqueles dias!

Rachel

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 01/12/2006
Reeditado em 15/07/2010
Código do texto: T306969