DESPEDIDA - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Já vejo apenas um ponto de terra no horizonte. Lá vou eu embora desse país maravilhoso. Como aprendi amar esse lugar tão quente, com sua gente tão festeira, com sua comida tão incomparável! Parece na verdade que estou indo embora de minha terra, quando na verdade estou apenas voltando ao meu lar. Mas o que é meu lar? Amo tanto esta terra que ora deixo para trás, que creio ser aqui agora o meu lar. O lugar em que me sinto amparado, aconchegado, protegido. Volto com lágrimas nos olhos e deixo aqui a saudade e a eterna gratidão da acolhida, a lembrança sempre vívida da minha coroação como o grande monarca do Reino Unido de Portugal e Brasil. As ondas do mar e o balanço do navio servem como acalanto para uma alma corroída já pela saudade breve e como afago pelas lágrimas que insistem em escorrer neste rosto já tão experiente e acostumado a dissabores tantos nesta vida.

O Brasil é apenas uma imagem a se desfazer ao fim de onde minha vista lacrimejante ainda consegue alcançar. Naquela terra tão pequena agora a meus olhos, grandes acontecimentos e mudanças provocaram em minha vida. Vivo num mundo em ebulição, num mundo em que tudo o que hoje é, amanhã parece que não vai mais existir. Vejo monarquias caindo umas atrás de outras, vejo invasões, guerras, deposições e arbitrariedades várias a acontecer nos tempos de minha vida, que fico a me perguntar o que me aguarda ao fim desta viagem que creio será fatídica. Talvez mais infausto do que aquela que fizemos meio às pressas neste caminho contrário. Era uma apreensão absurda e uma correria infernal para embarcarmos para esta terra que vai ficando no passado e tornando-se uma saudosa lembrança. Dentro desse navio, parece que revivo cada momento e cada apreensão da vinda para o Brasil. Nunca poderia eu imaginar que aqui eu seria tão feliz, como não esperava ter que voltar ao meu reino, embora soubesse que isso seria inevitável.

Foge-me o Brasil dos olhos. Não se pode mais ver a terra em que meu filho ficou assumindo meu lugar. Entendo que não voltarei mais a sentir esse calor e a contemplar estas florestas tão vivas, a conviver com festas tão alegres e com pessoas de tão bom coração. Parto daqui com uma dor imensamente maior do que aquela que senti ao deixar Portugal naquela jornada alucinante. Sinto no peito uma dor ramificada em partes muitas do meu corpo. Sinto deixar o Brasil, sinto as revoluções na terrinha, sinto perder o Brasil para sempre. Esse país é lindo, é rico, tem um povo trabalhador e lutador e vai conquistar sua independência sem tardar. É uma questão de tempo. Sinto como se estivessem cortando uma parte do meu corpo. Sangra-me a alma que percebe a inevitável separação das terras irmãs que se distanciam cada vez mais por esse imenso mar salgado e cheio de recordações.

A vinda foi uma viagem tensa. Assustava-me a cada momento, com cada palavra proferida um pouco mais alta ou com cada grito de marinheiro. Sempre a sombra do ataque inimigo atormentava-nos a todos. Quando enfim, vi o solo brasileiro e a alegria do povo baiano, meu coração apreensivo e atormentado saltitou de júbilo e regozijei-me com todos os que nos acompanhavam nesta epopeia. A triunfal chegada ao Rio de Janeiro me fez sentir um verdadeiro rei do Brasil, senhor de terras tão vastas e de um povo que me aclamava num misto de respeito e curiosidade, como se podia perceber nos olhos indiscretos dos brasileiros, como a ver um ser de outro mundo.

Olhando agora apenas o mar em direção ao solo caloroso desta terra, revivo cada momento, cada passo de realizações tão esplendidas que este lugar conheceu após minha chegada. O Brasil fugiu-me completamente dos olhos. Não vejo mais vestígio algum de terra, somente as águas privilegiadas por banhar esse lugar abençoado. O Brasil era um lugar sem urbanização, sem obra alguma de significância. Deixo para trás um lugar pronto para sua soberania. Não tinha e agora tem um banco, biblioteca, jardim botânico, arte e cultura, e tantas outras realizações que ficaram para além destas belas águas azuis.

Como estarão agora meu filho e sua esposa, sem minha proteção e sem a presença do monarca ao seu redor, dando conselhos e assegurando a legitimidade do trono e do poder central. Ah meu Deus, queira que o Brasil não se esfacele em reinos e repúblicas que lutem entre si por terras e pelo poder. Sonho com um grande país e com uma grande nação, com a marca do governo português. Sonho com um povo unido e forte, ao redor de meu regente para fazer o desenvolvimento continuar em franca expansão como deixei para trás. Sinto um aperto no coração ao olhar para trás e uma ansiedade enorme ao olhar para frente. Não sei que direção trará mais alegrias ou sofrimentos. Partida e chegada trazem emoções fortes, antagônicas, mas igualmente surpreendentes.

Mas enfim, volto-me para a frente e contemplo esse navio e esse mar quase infinito que me levará de volta a meu povo que um dia deixei assustado com nossa fuga-estratégia inesperada frente às forças despóticas e intolerantes de Napoleão. O futuro nos espera e traz a incerteza do que nos vem pelo caminho. Mas tudo bem, sou experiente nessa arte de driblar situações em que muitas outras pessoas teriam muita dificuldade em lidar. Casei-me num arranjo que demorou anos para ser consumado e depois, conturbado, e tive que lidar com minha mãe, possuidora de dificuldades mentais a governar um reino tão vasto sem as faculdades necessárias e exigidas para tanto. Ainda tive que negociar politicamente com ingleses e franceses e criar estratégias para por muito tempo lidar com as dificuldades que aumentavam a cada dia.

Agora meu olhar e meu coração estão voltados para o Brasil e para minha despedida desta terra. Eu não queria voltar. Às vezes penso que ser um monarca tem o lado fantástico de trazer dentro de si um rol de privilégios e possibilidades de se fazer algo pelo povo ao rei confiado. Há toda uma tradição de família, ora amada, ora odiada, que bem ou mal constroem a nação e direcionam os rumos do reino. Entretanto há o lado não fantástico, que nos obriga a casamentos arranjados para perpetuar-se o poder. Somos proibidos de amar. Não escolhemos com quem vamos passar nossos dias e ter nossos filhos. Nem ao menos podemos escolher onde ficar. Veja eu aqui, um nome carregado de glórias e títulos, João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança, ou simplesmente D. João VI, sem direito de escolher entre querer ficar no lugar que ama ou de não querer voltar para onde não se quer. Não tenho direito de escolher meus caminhos, minha casa, minha vida. Nem ao menos posso sair na rua de qualquer jeito, com qualquer traje ou freqüentar lugares comuns. Somos soberanos de muitos, mas nada de nós mesmos. Ah como eu daria uma fortuna para não precisar fazer escolhas já escolhidas. É uma vida pronta, combinada, obvia, sem possibilidades de grandes mudanças.

Assim sigo eu meu caminho não escolhido. Sigo eu rumo ao lugar em que não queria estar por ser despossuído de liberdade de escolha. A saudade do meu querido Brasil ficará em minha alma, e levarei os brasileiros, o tempo, as montanhas e as belíssimas praias dentro do coração. De onde estiver estarei sempre me recordando daquele lugar tão maravilhoso. O Brasil é um lugar tranquilo, sem maiores dificuldades para mim. Voltar para a Europa significa lutar com todas as minhas forças para que tudo continue sempre com governabilidade possível. Ó mar, poderia me levar de volta, com seus ventos contrários, com suas ondas sempre certeiras nas praias, com suas águas sempre encantadoras. Olhando para o horizonte quase infinito à frente, encaro meu destino. Portugal, aí vou eu novamente. Lutemos juntos, façamos deste, o maior reino deste planeta. E que Deus esteja conosco. Sempre.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 01/07/2011
Código do texto: T3069482
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