O ácido da Existência

Ele sabia que a vida não facilitava as investidas, mesmo assim lutou com bravura combatendo o bom combate. Ouviu a hora do Ângelus com os sinos repicantes da Igreja de São Sebastião, sentindo um amargo na boca que lhe escorria um queimar de infelicidade inexplicável. Toda a beleza das cores foi substituída pelo cinza de uma vontade injustificada de voar, além de todos os infinitos, carregado de dores invisíveis. Foi imitando os psicóticos que rodopiavam nos antigos hospícios, dando voltas para chegar a lugar nenhum, sofrendo as ações da droga repressiva nomeada de angústia. Nem as revistas em quadrinhos tinham mais a paz que outrora lhe amaciava o âmago. Foi em um dos seus últimos pesadelos que sentiu que tudo havia se acabado, viu Mickey ser fuzilado por João Bafo de Onça e Minie ser seqüestrada e estuprada pelos Irmãos Metralha. Os Escoteiros Mirins foram presos vendendo drogas na escola enquanto Lalá, Lelé e Lili se prostituíam no Parque. Margarida foi assassinada pelo Pato Donald numa fúria inexplicável de ciúmes. No boletim de ocorrência consta crime passional. Tio Patinhas é preso por lavagem de dinheiro e culpa a faxineira da caixa forte. O Super-Pateta foi envenenado com seus amendoins do poder no laudo diz que foi excesso de agrotóxico. Tex é abatido junto do amigo Carson e as canções do Velho Oeste assobiam o desespero, a flauta doce lembra o funeral da esperança e o delicado violão MPB soa dolorido de dó a si. O Pato Fu desencanta com a “Canção pra viver mais” agora um pântano hediondo se instala no interior da psique, nem a felicidade de Epicuro torna viva a luz que se apagou no sorriso. Ele parece despedir-se desta vivência doentia, deste plano torturante que mescla sangue e lágrimas na obrigação de resistir. Cai uma chuva fina descendo de um céu tristonho que grita, ecoando nas imensidões infernais de uma tristeza imensurável. Os pés sobre as poças d’água cheirando a esgoto parecem se decompor, como um leproso terminal que se arrasta sem destino. Uma sombra quer lhe esmagar os passos, nomeando passados ressentidos, enxerga pessoas surgindo e diluindo-se sob na fúria que não se controla dentro de mundo corrosivo apenas seu. Em um instante a história que se ouviu sobre o grande russo Maiakovski se repete ali naquele lôdo que se cruza com o nada. Os funcionários da Funerária estavam sentados assistindo ao Programa do Jô e davam gargalhadas quando alguém informou a desgraça ocorrida, para alegria de quem vive da morte. A chuva continuou aumentando o ritmo e a ventania assoviou no ermo da tragédia que acabava de ocorrer. Uma sombra então retorceu as folhagens da barriguda grávida da Primavera que parece abortar no instante final. Nos olhos semi-abertos, a tristeza não se preocupou em ocultar sua culpa, lágrimas petrificadas dependuradas nos cantos dos olhos denunciavam que o choro o perseguiu por diversas horas. Uma caixa pregada a poucos pregos foi à rede de descanso de um cansado lutador que sonhou com um mundo diferente, nascido sob o signo da liberdade e dos sóis escaldantes viveu suas mais loucas prosas e seus insólitos delírios. Não acreditava nos ferrões do Satanás nem tampouco nos escritos que colocaram Jesus Cristo nos céus de corpo e alma. Mas o alívio no campo da incerteza de outra existência foi o guia, os hipócritas pretendem chorar com suas mentiras para satisfazer as consciências carregadas. Outros vão idolatrá-lo e sugar seus últimos conselhos em forma de ensinamento. A necrofilia bruta e desleal deverá chegar com os mesmos discursos, lembrando que ali ele foi importante, pois amou as vezes que todos odiavam, e quis quando todos desprezavam. E assim acabou a história.