A canção da felicidade simples
Tem dia que não dá, tento, tento e não consigo escrever nada. Até começo, mas a narrativa não sai, fica amarrada e eu desisto. Quinta feira foi um desses dias, mesmo na Clínica, onde costumo ter bons insights tudo o que eu pensava virava pó antes de adquirir forma. Mas logo que saí de lá, aconteceu...
Estava voltando para casa, louca por um bom banho, quando a vi, sentada na entrada da casa da esquina de minha rua. Chorava, um pranto dorido e convulso. Cheguei a pensar em fingir que não vira nada, que não era comigo, principalmente porque me lembrei...
Quando nos mudamos para Lavras fui estudar no Colégio N.S. de Lourdes, bem perto. Só começava a pensar em ir para lá quando dava o primeiro sinal anunciando que a aula começaria em cinco minutos. Embora não tivesse pressa em sair da cama nem de casa, também não tinha pressa em voltar. Depois da aula minhas colegas e eu subíamos até a Praça para conversar e ver os meninos. Dobrávamos os cós das saias para que ficassem mais curtas e íamos todas faceiras, flanar, ver o filme que iria passar a noite no cinema e combinar coisas. No caminho havia um velho, bem velho, que ficava assentado na porta de entrada de uma loja de móveis. Ele trazia as duas pernas enfaixadas e tinha um sorriso triste. Desde o começo, entre ele e eu houve cumplicidade. Eu sempre tinha um sorriso para ele, que devolvia feliz. Um sorriso e um dinheirinho, que lhe dava discretamente. Deixei de comprar muitas revistas, meu grande vício na época, mas nunca deixei que ele ficasse sem um trocadinho. As meninas não estavam nem aí para ele e eu me deixava ficar para trás para viver o nosso momento de ternura. Eu chegava a subir sozinha aos sábados pensando que de alguma forma, se ele não me visse ficaria triste. Triste ilusão que só têm os muito jovens. Cheguei até a escrever um poema sobre ele, que se perdeu, após meu desencanto. Não me lembro bem do poema, mas me lembro do título :Canção da Felicidade Simples.
Um dia ele não estava lá e no outro também não. Descobri que tinha morrido. Quando meus olhos se encheram de lágrimas, alguém disse:Credo, chorar por aquele velho safado! Foi então que descobri que o meu velhinho tinha família, muitos filhos, mulher nova e ... muitas casas de aluguel. Que conseguira se fazendo de vítima e enganando trouxas como eu.
Pensando tudo isso, não assim elaborado, mas em um flash abrangente, senti uma vontade louca de estar em casa, de não ter encontrado a mulher chorando.
Mas de repente lá estava eu perguntando a velha sentada na esquina, a razão do seu choro, para descobrir que ela chorava porque estava nervosa e cansada de tanto andar. Que estava com fome e com frio e sem gás em casa para cozinhar para a irmã inválida. E que ainda tinha que andar muito e muito para marcar consultas na URPA e buscar exames.
E eu, o que podia fazer?
Eu podia simplesmente ter seguido o meu caminho e esquecido aquela cena. Eu podia ter ido para casa, tomar um banho quente em meu confortável banheiro e tomado meu copo de iogurte com aveia para esperar o almoço. Eu podia tanta coisa, mas só consegui pegá-la pela mão gelada e levá-la até a minha Fábrica de Pães onde foi alimentada e ainda levou quitandas para a irmã. E o dinheiro para o gás. E ganhou uma carona para a URPA.
Ela me enganou? Não sei e nem quero saber. Quando ela me disse Deus lhe abençõe eu disse Obrigada e completei para mim mesma: A Senhora nem pode imaginar o quanto ele já me abençoou.
Tem dia que não dá, tento, tento e não consigo escrever nada. Até começo, mas a narrativa não sai, fica amarrada e eu desisto. Quinta feira foi um desses dias, mesmo na Clínica, onde costumo ter bons insights tudo o que eu pensava virava pó antes de adquirir forma. Mas logo que saí de lá, aconteceu...
Estava voltando para casa, louca por um bom banho, quando a vi, sentada na entrada da casa da esquina de minha rua. Chorava, um pranto dorido e convulso. Cheguei a pensar em fingir que não vira nada, que não era comigo, principalmente porque me lembrei...
Quando nos mudamos para Lavras fui estudar no Colégio N.S. de Lourdes, bem perto. Só começava a pensar em ir para lá quando dava o primeiro sinal anunciando que a aula começaria em cinco minutos. Embora não tivesse pressa em sair da cama nem de casa, também não tinha pressa em voltar. Depois da aula minhas colegas e eu subíamos até a Praça para conversar e ver os meninos. Dobrávamos os cós das saias para que ficassem mais curtas e íamos todas faceiras, flanar, ver o filme que iria passar a noite no cinema e combinar coisas. No caminho havia um velho, bem velho, que ficava assentado na porta de entrada de uma loja de móveis. Ele trazia as duas pernas enfaixadas e tinha um sorriso triste. Desde o começo, entre ele e eu houve cumplicidade. Eu sempre tinha um sorriso para ele, que devolvia feliz. Um sorriso e um dinheirinho, que lhe dava discretamente. Deixei de comprar muitas revistas, meu grande vício na época, mas nunca deixei que ele ficasse sem um trocadinho. As meninas não estavam nem aí para ele e eu me deixava ficar para trás para viver o nosso momento de ternura. Eu chegava a subir sozinha aos sábados pensando que de alguma forma, se ele não me visse ficaria triste. Triste ilusão que só têm os muito jovens. Cheguei até a escrever um poema sobre ele, que se perdeu, após meu desencanto. Não me lembro bem do poema, mas me lembro do título :Canção da Felicidade Simples.
Um dia ele não estava lá e no outro também não. Descobri que tinha morrido. Quando meus olhos se encheram de lágrimas, alguém disse:Credo, chorar por aquele velho safado! Foi então que descobri que o meu velhinho tinha família, muitos filhos, mulher nova e ... muitas casas de aluguel. Que conseguira se fazendo de vítima e enganando trouxas como eu.
Pensando tudo isso, não assim elaborado, mas em um flash abrangente, senti uma vontade louca de estar em casa, de não ter encontrado a mulher chorando.
Mas de repente lá estava eu perguntando a velha sentada na esquina, a razão do seu choro, para descobrir que ela chorava porque estava nervosa e cansada de tanto andar. Que estava com fome e com frio e sem gás em casa para cozinhar para a irmã inválida. E que ainda tinha que andar muito e muito para marcar consultas na URPA e buscar exames.
E eu, o que podia fazer?
Eu podia simplesmente ter seguido o meu caminho e esquecido aquela cena. Eu podia ter ido para casa, tomar um banho quente em meu confortável banheiro e tomado meu copo de iogurte com aveia para esperar o almoço. Eu podia tanta coisa, mas só consegui pegá-la pela mão gelada e levá-la até a minha Fábrica de Pães onde foi alimentada e ainda levou quitandas para a irmã. E o dinheiro para o gás. E ganhou uma carona para a URPA.
Ela me enganou? Não sei e nem quero saber. Quando ela me disse Deus lhe abençõe eu disse Obrigada e completei para mim mesma: A Senhora nem pode imaginar o quanto ele já me abençoou.