Identidade em Surto
Analéia levantou os olhos para o relógio e se apressou em concluir as evoluções de enfermagem. Com um rascunho de letras corridas sem regras e acentos, ia copiando prontuário por prontuário até que o ultimo de numero 156 fora fechado. Mais uma vez com eximia dedicação a Técnica confere todos no local destinado aos dados vitais; Pressão Arterial, Pulso, Temperatura e respiração. Mais uma olhada no relógio e repete pensativa” Vinte e três horas e quarenta e cinco minutos”. Naquela noite ela trabalharia sozinha na imensa ala de pacientes suicidas em fase terminal, um corredor que abriga vinte e duas portas em um canto recuado do Hospital de Assistência a Saúde Mental Michel Foucault. Apesar de tantas portas a ala se encontrava com apenas três pacientes, já que por ordem da Vigilância Sanitária deveria ser desativada até que a reforma exigida fosse concretizada. Faltavam cinco minutos para a meia-noite quando a moça saiu do posto de Enfermagem com uma bandeja de alumínio forrada por uma compressa branca, no interior duas seringas com mais ou menos dois ml de líquidos e duas bolinhas de algodão umedecidas em álcool a 70%. Ainda na bandeja um copinho plástico com dois comprimidos sendo um branco e outro alaranjado. A luz fraca do corredor pela precariedade das instalações, transmitia um ar fantasmagórico nas sombras que seus passos provocavam nas mudanças de lado a lado. Um trovão estronda lá fora e o coração de Analéia explode junto na taquicardia, um arrepio estranho força o andar que ainda precisa medicar o ultimo paciente. A porta está entre aberta e um escuro com reflexos de objetos no interior é visível da entrada, mais uma vez ela confere o nome e o leito e acende a luz do quarto. Hironilio Adamastor tem 46 anos de idade, há vinte iniciou com quadro de depressão e idéias de auto-extermínio, dizia que era perseguido por um duende chamado Atila. No decorrer desta trajetória foram quatro tentativas de morrer, a ultima foi pular de o décimo terceiro andar de um prédio. Múltiplas fraturas além da amputação do membro inferior esquerdo, deixara Adamastor com poucos suspiros de vida, complicação em diversos órgãos internos inclusive a perfuração do baço. Ao projetar o clarão da luz no rosto desfigurado do paciente a Técnica de Enfermagem percebeu que não haveria mais necessidade da medicação, certificou a suspeita com os dedos indicador e médio naquele pulso que não apresentou reação alguma. Outro trovão ribomba lá fora e um grito ecoa no corredor vazio, o desespero de alguém que foge de uma terrível perseguição, uma porta se abre com força, um vento sopra morno no ouvido de Analéia e outro arrepio lhe eriça os pêlos do corpo, o coração bate mais rápido e o medo torna-se real. Seus sentidos estão presos no cadáver do suicida e seus pés como visgo no chão. Um calor repentino invade seu corpo e uma fumaça ofusca-lhe a visão, uma vertigem nauseante, uma tentativa de pedir socorro é abafada pela falta de voz, o suor molha suas vestes brancas e o medo amplia naquele espaço com odor de antibiótico. Um novo grito é impedido pela falta de voz com os pés ainda colados ali. O rosto umbroso do morto começa a abrir um leve sorriso, a mão direita envolta em atadura se move lentamente em direção na sua direção, com muito esforço o visgo desprega sob seus pés e simultaneamente recobra a voz, para gritar loucamente por socorro, no corredor deserto uma barata saindo de um dos quartos é a única testemunha do seu martírio, enquanto corre gritando olha para trás e enxerga a figura do paciente que dera como morto, a observar da porta com um sorriso sem dentes exalando fogo dos olhos. O calor que intensifica a cada grito obriga Analéia a se despir de todas as vestes... Um novo trovão ainda mais intenso deixa pior aquela situação, as luzes do imenso corredor se apagam e... Dois homens e uma mulher tentam conter novamente aquela agitada paciente do leito 66, há pouco acordara gritando que o morto estava vivo. Na evolução clínica o médico descreve: “Paciente normocorada, apresentando variações de humor, fora de tempo e espaço, com negativa de identidade assumindo-se como Analéia”. Manifesta intenções de auto-extermínio. Verificar dados vitais de 04 em 04 horas e reforçar cuidados. Manter prescrição. Após a leitura do prontuário uma seringa com dois ml de um liquido incolor é injetado na veia de Ana Maria que por recomendação medica também é amarrada até alivie o surto.