O MELHOR LADO DA VIDA
Hoje em dia o que me incomoda é o excesso de possibilidades.
Quero ter uns dez melhores empregos: - para que entender de uma coisa só?
Preciso – e não é por exatidão, deveras! – possuir no repertório uma coleção de mulheres, de preferência ao mesmo tempo: uns quatro casamentos simultâneos, mas obscuros entre si: uma loira, a morena, que mulata! e também, para nunca me acomodar, aquela mesticinha. Sim, preciso de todas.
Imóveis? Uns dez. Na praia, no campo, em Paris... O resto eu alugo. O que não der para alugar, eu exibo. E assim vou arrumando o meu pedigree em definitivo.
Jamais almoçarei em casa novamente! Pra que? Com este aspecto indispensável para os bons relacionamentos, serei sempre gentil hóspede nos melhores restaurantes, a cargo de inesperados convites inscritos em cartas de vinhos: um brinde! da originalidade ao apreço!
Farei capela das doses de alegria que, antes de entorná-las, deitarei aos santos: um pouco pra fé, um tanto pra gente, e o instante segue em frente! – para que duvidar do que não provoca desconforto? Afinal, deu tudo tão certo até aqui...
Amigos? Serão tantos que juntos fundaremos uma nação, cuja libertária organização, interligada pela lei suprema da amizade, cairá num estado sem Estado... Contará o amor leviatânico, soberano: – bem-vindo!
Tentarei também contra o jogo, afinal, hors-concours como sou – no caso de um futuro descente – só haverá contra mim quem comigo não pode.
Acontece que o telefone toca e o chefe dita a ordem:
– dezenas de obrigações pra bater, dígitos irreais pra somar, volumes e mais volumes de documentos esperando o despache...
E lá em casa? Contas de um atraso impertinente, que juntadas, são a cara do cobrador: tensa, marcada, ferrada... Saforil, fazer o que?, oras pois...
Os filhos colecionam cáries de vários tamanhos, piolhos que tiram proveito de um colégio mal cuidado.
E os desejos? – só suspiram por aquilo que os primos têm, apenas aspiram ser aquilo que os melhores amigos distantes são.
Tantas possibilidades: ser o que não posso, poder o que não sou.
Hoje em dia, camarada, parece ontem: tanta possibilidade me havia.
O que aconteceu com o calhar dos anos? Fui-me encaixando tanto, mas tamanha encaixadura: que as minhas articulações passaram a sofrer de sede crônica. E fui baixando a guarda, em condição de abaixadura: que as duas costas nem me deram bola mais.
Acontece, camarada, a vida é o jogo das impossibilidades. Oferta muitas coisas que poderão, mas raríssimas serão.
E como não morrer de saudade? – sim, o passado era uma possibilidade de amanhã ser tudo isso!
Simples: imagine, camarada, a vida como um elo só: vista em perspectiva, é melhor do que ser vivida; vista assim sem dar na vista, é melhor que o melhor ainda.
Seja de simplicidade, seja sempre, porque é vida.