A outra.

Quando eu era bem jovem era também muito fantasiosa. Eu não gostava nem um pouquinho de mim e por isso inventei outra para ser eu. A outra era tudo que uma adolescente podia sonhar: perfeita. Era linda, branquinha e cheia de sardas charmosas, com os cabelos avermelhados e olhos azuis como os de Elizabeth Taylor. Tinha nome e sobrenome, aliás um nome bem cafona para os meus padrões atuais. Criei para ela uma vida completa, tinha até uma casa maravilhosa, um carro esporte sem capota e uma grande paixão. Não era uma menina boboca como eu. Viajava pelo mundo inteiro, conhecia pessoas interessantes que faziam questão de sua amizade. Era só a vida ficar chata que ela aparecia, sem pedir licença, até que  certa altura da vida ela se tornou tão presente que tive medo que me ofuscasse. Não que eu agisse como ela, minhas atitudes continuavam a ser  as de uma roceirona caipira. No entanto dominava de tal forma os meus pensamentos que tive medo que   ocupasse por inteiro o meu corpo e aí eu nem  seria eu nem  ela.E olha que naquele tempo eu nem sabia que pensamentos têm vida própria, como sei agora,e por isso cuido deles com cuidado.
 
 
Foi por isso que tive de matá-la. Não foi suicídio, mas assassinato mesmo. Como foi legítima defesa, nunca senti culpa, nem ninguém me condenou, pois se nem sabiam que ela existia como iriam saber que tinha morrido assassinada por mim? Mesmo assim o seu fantasma veio assombrar-me. Vi o filme As Barreiras do Amor, onde Michelle Pfeiffer, como a texana Lurene, vivia uma fantasia semelhante – ela fantasiava ser Jacqueline Kennedy e só parou com essa idéia obssecante quando sua própria vida se transformou em uma aventura. Eu não cheguei a tanto, nunca quis ser outra pessoa de verdade, inventei para mim uma pessoa perfeita, mas acabei dando cabo dela. Tive que fazer uma escolha entre ser eu ou ser outra e  ser eu venceu. Como não estava satisfeita comigo tratei foi de transformar-me em uma eu melhorzinha. Não pela aparência, afinal nada como a juventude e seu viço. Mas pela alegria de viver e a certeza do poeta das múltiplas faces: tudo vale a pena quando a alma não é pequena.