Um campo verde com flores amarelas
-20 de maio (2) 
 
Falar sobre o meu irmão Tarcízio, como já disse em crônica anterior, é impossível em uma só crônica. Por isso volto para relembrar aqui, para limpar o meu coração da saudade que tenho dele.

Ele morreu em um 20 de maio, véspera do aniversário de meu pai e do meu irmão caçula, o Dudu. Todos ficamos desolados e sei que é impossível comparar a dor para medi-la e saber qual a maior. Por isso só posso falar da minha e dizer que a dor foi enorme, mas dentro daquelas máximas antigas que considero (quase) verdadeiras: Deus dá o frio conforme o cobertor/Deus não nos dá cruzes que não agüentamos carregar. Aguentei e a dor pungente passou ficando a lembrança gostosa de uma pessoa que eu amei e que sei também me amou. Durante um longo tempo eu fui diariamente ao cemitério para conversar com ele, em seu túmulo. Nessa época os meus conceitos de morte e vida ainda eram incipientes e eu me sentia mal se até lá não fosse. Soube mais tarde que meu pai fazia o mesmo, mas nunca nos encontramos.

Em um desses dias tive uma experiência marcante – eu me aproximava do portão do cemitério e vi algumas pessoas assentadas, conversando. Foi então que percebi: falavam dele. Eram pessoas simplesmente vestidas e eu continuei a andar, lentamente, para poder ouvir. Quando cheguei junto ao túmulo não consegui conversar com ele, só chorar. As pessoas contavam histórias a respeito dele, todas elas mostrando uma situação em que sua bondade se revelava. Só parei de ir ao cemitério depois do sonho que tive com ele, o único, em toda a minha vida. No sonho fui até a casa dele fazer não sei o que e lá chegando fui direto para o terreiro. Foi então que o vi, do outro lado da cerca, caminhando em um campo verde repleto de flores amarelas. Em um determinado momento ele se voltou para trás e acenou para mim, como se dissesse adeus. Compreendi, ele estava livre e eu precisava deixar que seguisse o seu caminho. Então, recomecei a viver. 
 
Ano passado estive no Chile e fiquei deslumbrada com os campos verdes repletos de flores amarelas. Disseram-me que era uma praga, mas eu nem liguei. Sabia que era o paraíso.
Agora, enquanto escrevo, as lembranças passam pela minha mente como um filme antigo, ou retratos em sépia. Durante algum tempo ele foi viver em nossa pequena fazenda, hoje não mais nossa e praticamente zona urbana. Era bem próxima e ir lá era um pulo só. Eu havia chegado da aula e o vi subindo a rua e perguntei-lhe aonde ia. Para casa, respondeu. Eu sabia que o último ônibus passara e por isso lhe disse que entrasse no carro porque iria levá-lo. Eu o levei e deixei-o na porteira de entrada. Para quem planejava ir a pé eu o deixei a um passo da porta de casa. No dia seguinte eu soube que assim que os faróis do carro desapareceram na escuridão, ele deu meia volta e voltou para a cidade, passando a noite na farra. Quando eu lhe cobrei justificou-se apenas dizendo que não estava com sono.

Nunca teve habilitação para dirigir o que também nunca o impediu de pegar o carro e sair dirigindo. Uma vez saiu entregando pão de madrugada e enfiou o carro em um poste, entortando o poste. Outra vez chamou-me pela madrugada pedindo para ir buscá-lo: tinha sofrido um acidente quando estava de carona com um amigo. Não sei até hoje se burlei a vigilância da família para fazer isso ou se fingiram que não viram sair de madrugada e voltar com ele. Quando nosso tio morreu, foi ele quem me deu a notícia. Naquele tempo eu ainda freqüentava Igrejas e tinha ido á Missa. Quando voltei vi a Padaria fechada e ele de fora, a minha espera. Contou-me e é claro, chorei. Foi ele quem me consolou.

Éramos dez e quando ele se foi, passamos a ser nove irmãos. Nunca me acostumei com isso e quando me perguntam quantos irmãos eu tenho respondo sempre nove. Embora nem nove mais sejamos porque há três anos, outro de meus irmãos morreu. Mas isso será assunto para junho, que foi quando ele morreu.
l