20 de maio (1)
Já faz um tempinho bom, mas foi em 20 de maio que meu irmão Tarcízio morreu.
Ele era uma pessoa especial e até hoje sempre tem alguém contanto um caso sobre ele.
Nasceu pequenininho, bem aquém dos bebês normais e nunca cresceu o suficiente para ter um tamanho normal. Foi a criança mais levada que conheci e nunca, mas nunca mesmo ninguém conseguiu colocar-lhe um freio, para desespero de minha mãe que desejava um filho certinho. Era livre e independente, fazia o que queria e passou a vida entre dois fogos, a repressão materna e o acobertamento paterno.
Era mais novo do que eu, vinha logo a seguir e tão logo eu adquiri ciência de quem éramos me tornei a sua protetora. Gostávamos muito um do outro e até hoje sua lembrança me emociona.
São tantas as histórias sobre ele que uma crônica só não será suficiente. As lembranças, algumas um simples borrão, vão até os tempos em que morávamos em Arantina e enquanto eu, apaixonada pela escola, ele só permanecia na sala de aula se fosse constantemente vigiado. Era só um descuido e ele desaparecia. Um dia ele desapareceu e ninguém achou. Era no tempo em que eu ainda rezava e como rezei desesperada, certa de que ele certamente havia se afogado em alguma lagoa ou tivesse sido levado por ciganos ou circo, até pelo Saci Pererê. Passamos o dia a sua procura até que alguém, não sei quem, resolveu subir em cima da pilha dos sacos de farinha, na Padaria, e olhar pelo alçapão que levava ao teto: lá estava ele, encolhidinho, esperando a confusão passar.
Quando viemos para Lavras, de tanta bomba que tomou, era colega do irmão mais novo. Era tão pequeno, mas já lhe apareciam as primeiras penugens e então os colegas, bem meninos, lhe colocaram o apelido que carregou por toda a sua curta vida: Barbudinho. É lógico que eu ficava indignada, mas depois me acostumei, como a gente se acostuma com tudo que não tem remédio.
Teve duas grandes paixões na vida: o Botafogo, do Rio e a Olímpica, o time de futebol de Lavras que ficava bem perto de casa. Não era bom jogador, tornou-se juiz e roubava descaradamente para o time do seu coração. Quando morreu seu corpo foi velado na sede do Clube e envolvido com a bandeira que tanto amava. Faz muito pouco tempo que Henrique, outro fanático pela Olímpica me contou – ele era como uma mascote do time, cuidava de tudo, distribuía os uniformes, levava balas para os jogadores. Se ele não aparecia o time se sentia desfalcado. Naquela tarde ele não chegava e já estava todo mundo aflito quando ele apareceu com uma cara triste de dar dó. Perguntaram-lhe o que tinha acontecido e ele respondeu, sem muitas palavras: eu estava enterrando meus filhos.
Sim, ele teve filhos e enterrou os três. Primeiro veio um, o Renato e antes que gravássemos o seu rostinho na alma, se foi. Depois vieram os gêmeos, Marcos e Paulo, e se foram mais rápido ainda. Eu o ajudei a enterrá-los, ambos em caixas de sapatos, porque também eram pequenininhos como o pai. Já a mãe, a mulher que se casou com ele, era bem alta. Formavam um casal inesquecível.
Nunca foi de trabalhar. Ficava na Padaria, mas não podia se confiar. Se passasse alguém e o chamasse ele ia atrás. Na época que se envolveu com a mulher com quem se casou, engravidando-a, foi lhe dito que precisava trabalhar. Um amigo lhe deu um emprego: foi ser porteiro de motel de beira de estrada. Um dia eu o vi, indo para o trabalho a pé e quase morri de dor. Meu pai também o viu e não resistiu: comprou-lhe uma casa, montou um depósito de pães e ele e a mulher viveram ali até a morte dele.
Ficou muito doente por duas vezes. Na segunda não resistiu. Foi então que tive uma experiência mística marcante: eu estava encostada na parede, frente à porta da UTI. De repente eu senti que deslizava para o chão e vi tudo o que passava lá dentro – ele estava deitado em uma cama sendo cuidado por uma enfermeira que de repente começou a chamar: Dr. Shikasta, Dr. Shikasta! Então um médico de aparência indiana se achegou a ele. E também muitas e muitas pessoas de branco, nas quais reconheci os mortos de minha família. Havia um porém, morto recente, que não estava de branco e sim de beije, e olhava do lado de fora de uma porta, só meio corpo para dentro. Não, ele não morreu naquele dia. Eu, quando dei por mim, tinha sido levada para um quarto do hospital, desmaiada. Ele morreu no dia seguinte, quando eu novamente estava em meu posto, de plantão. Nossa mãe veio vê-lo e assim que ela se afastou, ele morreu.
Já faz um tempinho bom, mas foi em 20 de maio que meu irmão Tarcízio morreu.
Ele era uma pessoa especial e até hoje sempre tem alguém contanto um caso sobre ele.
Nasceu pequenininho, bem aquém dos bebês normais e nunca cresceu o suficiente para ter um tamanho normal. Foi a criança mais levada que conheci e nunca, mas nunca mesmo ninguém conseguiu colocar-lhe um freio, para desespero de minha mãe que desejava um filho certinho. Era livre e independente, fazia o que queria e passou a vida entre dois fogos, a repressão materna e o acobertamento paterno.
Era mais novo do que eu, vinha logo a seguir e tão logo eu adquiri ciência de quem éramos me tornei a sua protetora. Gostávamos muito um do outro e até hoje sua lembrança me emociona.
São tantas as histórias sobre ele que uma crônica só não será suficiente. As lembranças, algumas um simples borrão, vão até os tempos em que morávamos em Arantina e enquanto eu, apaixonada pela escola, ele só permanecia na sala de aula se fosse constantemente vigiado. Era só um descuido e ele desaparecia. Um dia ele desapareceu e ninguém achou. Era no tempo em que eu ainda rezava e como rezei desesperada, certa de que ele certamente havia se afogado em alguma lagoa ou tivesse sido levado por ciganos ou circo, até pelo Saci Pererê. Passamos o dia a sua procura até que alguém, não sei quem, resolveu subir em cima da pilha dos sacos de farinha, na Padaria, e olhar pelo alçapão que levava ao teto: lá estava ele, encolhidinho, esperando a confusão passar.
Quando viemos para Lavras, de tanta bomba que tomou, era colega do irmão mais novo. Era tão pequeno, mas já lhe apareciam as primeiras penugens e então os colegas, bem meninos, lhe colocaram o apelido que carregou por toda a sua curta vida: Barbudinho. É lógico que eu ficava indignada, mas depois me acostumei, como a gente se acostuma com tudo que não tem remédio.
Teve duas grandes paixões na vida: o Botafogo, do Rio e a Olímpica, o time de futebol de Lavras que ficava bem perto de casa. Não era bom jogador, tornou-se juiz e roubava descaradamente para o time do seu coração. Quando morreu seu corpo foi velado na sede do Clube e envolvido com a bandeira que tanto amava. Faz muito pouco tempo que Henrique, outro fanático pela Olímpica me contou – ele era como uma mascote do time, cuidava de tudo, distribuía os uniformes, levava balas para os jogadores. Se ele não aparecia o time se sentia desfalcado. Naquela tarde ele não chegava e já estava todo mundo aflito quando ele apareceu com uma cara triste de dar dó. Perguntaram-lhe o que tinha acontecido e ele respondeu, sem muitas palavras: eu estava enterrando meus filhos.
Sim, ele teve filhos e enterrou os três. Primeiro veio um, o Renato e antes que gravássemos o seu rostinho na alma, se foi. Depois vieram os gêmeos, Marcos e Paulo, e se foram mais rápido ainda. Eu o ajudei a enterrá-los, ambos em caixas de sapatos, porque também eram pequenininhos como o pai. Já a mãe, a mulher que se casou com ele, era bem alta. Formavam um casal inesquecível.
Nunca foi de trabalhar. Ficava na Padaria, mas não podia se confiar. Se passasse alguém e o chamasse ele ia atrás. Na época que se envolveu com a mulher com quem se casou, engravidando-a, foi lhe dito que precisava trabalhar. Um amigo lhe deu um emprego: foi ser porteiro de motel de beira de estrada. Um dia eu o vi, indo para o trabalho a pé e quase morri de dor. Meu pai também o viu e não resistiu: comprou-lhe uma casa, montou um depósito de pães e ele e a mulher viveram ali até a morte dele.
Ficou muito doente por duas vezes. Na segunda não resistiu. Foi então que tive uma experiência mística marcante: eu estava encostada na parede, frente à porta da UTI. De repente eu senti que deslizava para o chão e vi tudo o que passava lá dentro – ele estava deitado em uma cama sendo cuidado por uma enfermeira que de repente começou a chamar: Dr. Shikasta, Dr. Shikasta! Então um médico de aparência indiana se achegou a ele. E também muitas e muitas pessoas de branco, nas quais reconheci os mortos de minha família. Havia um porém, morto recente, que não estava de branco e sim de beije, e olhava do lado de fora de uma porta, só meio corpo para dentro. Não, ele não morreu naquele dia. Eu, quando dei por mim, tinha sido levada para um quarto do hospital, desmaiada. Ele morreu no dia seguinte, quando eu novamente estava em meu posto, de plantão. Nossa mãe veio vê-lo e assim que ela se afastou, ele morreu.