Diário de três romarias fundidas numa só recordação
Diário de três romarias fundidas numa só recordação:
A cada um
a sua romaria
A meus filhos
Júlio e Filipa
com todo o amor
Razão da minha razão
Que terá um voo de regresso da China à Europa a ver com as romarias quaresmais de São Miguel?
Aí a umas três horas após a suave descolagem da enorme aeronave, de Hong Kong em direcção a Londres, absorvido a ler um trecho de um relato da obra de Marco Polo, que escolhera para a viagem na livraria do aeroporto, lembrei-me de que no regresso à ilha prometera ao Ernesto Resendes um texto sobre as romarias. Aliás, antes da minha ida a Macau, andara com o José António Rodrigues a seguir alguns ranchos, ele a fotografar e eu a provocar a rememoração de vivências. A minha filha Filipa dormia regaladamente a meu lado. Era a nossa primeira grande viagem juntos.
Mas sendo a viagem de ida e volta de Marco Polo de Veneza a Xanadu (que se prolongou por décadas e seguiu caminhos desconhecidos) uma coisa, e uma romaria de uma semana à volta da ilha de São Miguel em época quaresmal por caminhos conhecidos, outra bem diferente, eu próprio quis saber a razão da minha associação de ideias. Lá em cima, sentado com algum desconforto na cadeira do avião, noite escura, a razão que dei a mim próprio, e que agora partilho, foi de que, apesar dos objectivos comerciais, a viagem dera a Marco Polo conhecimento de si e do mundo à sua volta, tal como a viagem na romaria em torno da ilha nos pode vir a dar. Foi ainda de que a viagem de Marco Polo de Veneza a Xanadu, além de começar e acabar em Veneza, tanto como a viagem de cada rancho, começa e acaba na sua freguesia ou curato, exceptuando alguns grupos de fora.
Como as ideias andam como que coladas umas às outras, foi inevitável pensar em tudo aquilo que fui observando em muitas leituras ao longo da vida e assim chegar à partida e regresso de Ulisses a Ítaca, tal como no-la conta Homero, na versão de James Joyce ou numa outra de um autor catalão. No entanto, enquanto as duas primeiras configuram a circularidade do caminho, a terceira tipifica a linearidade descendente da viagem. E depois dei por mim a censurar-me: andas bem longe à procura de casos de viagens semelhantes à do romeiro e esqueces-te da viagem de retorno ao paraíso da Bíblia! E era um pouco verdade.
Que me proponho fazer?
Sendo este trabalho concebido e realizado a duas mentes, expresso em palavras por mim e em imagens pelo José António Rodrigues, que me restará dizer no meio do que já foi dito e fotografado por outros?
Claro que li o que há publicado sobre o tema das romarias, que não é muito, narrativas etnográficas sobre a romaria quaresmal, tentativas de encontrar a sua origem, poesia até, álbuns fotográficos e, tudo ponderado, propus ao Ernesto Resendes dar o meu testemunho de dentro para fora. Não me vou distanciar como mandam as regras da ciência nem me vou deixar absorver totalmente: vou tentar ser eu próprio e não me esconder atrás seja do que for.
Já na minha segunda romaria, a desenvolver estudos sobre moinhos e azulejos, alguns irmãos do rancho vieram ter comigo. Um deles, não me recordo já qual, perguntou-me, com ar de quem não aceita um não, se ia na romaria para depois escrever um livro. Como estava bem longe das minhas intenções fazê-lo, respondi, sem pensar o que fosse, que não, que estava ali como romeiro, como ele. Não acreditou. E dirá agora: vês como tinha razão, quando souber que publiquei este trabalho. Mas, na altura, confesso, não tinha.
Outra vez, de novo parados a descansar numa berma qualquer da estrada, numa das muitas paragens que o rancho faz, o binómio cansaço e descanso acompanhará quase obsessivamente esta nossa narrativa, talvez já na nossa terceira romaria, um irmão mais velho, que muitos terços rezara nas suas mais de vinte romarias, pediu-me que contasse a quem nunca foi na romaria que quem vai, não vai para comer e beber e gozar uma semana de férias. Se algum dia o fizer, irmão, não sei se o farei, respondi, tenho que contar a verdade e a verdade é só uma: isto não é nenhum passeio campestre.
Por que razão só escrevo agora? Antes de o Ernesto me ter convidado a escrever este livro sobre as romarias, tinha desejado com toda a força do meu desejo ir este ano na romaria como já não desejava há anos e anos, até por razões muito íntimas e pessoais, pois tivera um ano duro, bastante duro e enfrentara provas que nunca imaginara ter de enfrentar. Queria o duro vagar da romaria para arrumar o resto que faltava arrumar na minha cabeça, uma espécie de limpeza geral a fundo que se faz nas casas antes e depois do Inverno e, no entanto, a vida tem destas ironias, surgira-me uma feia complicação muscular na coxa esquerda. Quando o Ernesto me veio convidar, depois de hesitar, depois de me emocionar, disse-lhe: já que não posso ir na romaria por andar de muleta, vou à mesma mas de caneta. E deste modo fiz este ano a romaria. Deus não fecha uma porta que não abra uma janela?
Quanto ao que escrevo, ou que já estou a escrever, não acho importante dizer que vou fazer isso e não aquilo, vou dizer apenas que darei o meu testemunho de romeiro e deixarei a minha mente dialogar consigo própria numa espécie de diálogo com as minhas recordações. Porque, e apesar de ser lugar-comum, é bem verdadeiro dizer que apesar de não ir todos os anos, tendo já ido na romaria, serei romeiro para toda a vida.
Fez já vinte e quatro anos, o meu filho Júlio era ainda uma criança de colo, quando fui pela primeira vez na romaria. Desde então, fui mais duas vezes. A última foi há cinco romarias. Em todos os anos que não fui, nenhuma houve em que não quis ir inteiro, e nenhuma houve em que não indo inteiro não tenha ido em pensamento. Dou por mim a acordar em plena madrugada a tentar adivinhar onde estará o meu rancho naquele preciso momento e digo: eles estão ali agora. E não preciso perguntar a quem quer que seja para saber que é certo o que penso. Ou, durante o dia, onde quer que esteja: eles estão acolá. Eles, devo dizer, são todos os que vão no meu rancho. Creio que se disser que o meu rancho é o da Matriz de Nossa Senhora da Estrela da Ribeira Grande pouca diferença fará, porque tendo toda a gente o seu, ninguém se ofenderá por ter também o meu. E não o esconder. Não é melhor ou pior do que os outros, é simplesmente o meu. E se disser ainda que poderia ir em qualquer um dos outros ranchos, os do meu rancho decerto não se ofenderiam muito.
Ao falar desta minha experiência neste rancho, presumo dar, com algumas diferenças, conta da experiência vivida nos outros.
Que são romarias, além de viagens em torno da ilha?
Correcto, correcto, romeiro seria só o que vai em peregrinação a Roma, daí o termo romeiro, mas aqui usa-se assim e está muito bem. Também poder-se-ia chamar peregrino a quem vai de romeiro, mas ninguém chama ninguém assim aqui e continua a estar bem.
Quando é que surgiram as primeiras romarias quaresmais? Creio que não haverá quem pense nas romarias que não faça a pergunta. Mas, desculpem lá a desilusão que causo aos ainda iludidos, resposta honesta e única possível: não se sabe. Há que duvidar de quem afirme o contrário. Tanto quanto se sabe, conhece-se bem o fenómeno a partir do século XIX em diante, e pouco ou nada do século XIX para trás. No entanto, para as agremiações, tudo tem de ter forçosamente um princípio. Os romeiros não escapam à necessidade. Qual é o mito fundador aceite? Pelo menos por alguns deles. Que as romarias estão ligadas à subversão de Vila Franca do Campo de 1522.
A questão fulcral, no entanto, incide no seguinte ponto: como fazer a ponte entre as procissões votivas diárias, circunscritas então a Vila Franca do Campo, com as romarias à ilha inteira durante uma semana na altura da Quaresma da actualidade? Já não só pelos de Vila Franca do Campo, mas por todas as paróquias e curatos da ilha? A resposta não é convincente. Nem bate certo.
O cronista quinhentista das ilhas, Gaspar Frutuso, entre 1522 e 1563 (nova subversão) refere romarias à volta da ilha, mas como relacioná-las com as que hoje se fazem?
Há um elo que, a ter existido, entretanto, se terá perdido, ou simplesmente ainda não se encontrou. Com a documentação de que agora dispomos, que é pouca, a romaria cai na tradição oral, reconhecidamente insuficiente; só outra, não sei bem qual, nos poderá levar mais longe neste conhecimento. E, até lá, não vale a pena insistir. Este é o meu conselho.
Tenha a romaria a origem que tiver, será sempre um culto mariano que assenta no sacrifício e na penitência próprios da quaresma. Digo mariano e acrescento temperado, porque Maria é um meio para chegar a Cristo e à Santíssima Trindade, e não um fim em si mesmo. Não é um culto erudito, é popular, privilegia a fórmula em detrimento da espontaneidade da oração, dando ênfase à oração ritualizada, à quantidade de vezes em que ela é recitada talvez mais do que à qualidade em que é rezada. Se bem que se apele à concentração na oração.
Como é que a Igreja vê os romeiros? De um modo geral, vê-os como católicos que só vão à igreja naquela semana e pouco mais. Só a procuram, eventualmente, em dias de casamento, baptizado, enterro, Espírito Santo, Natal e pouco mais. A Igreja, ao insistir para que os romeiros sejam católicos praticantes o ano inteiro, pode provocar o efeito contrário ao inicialmente desejado: afastar em vez de aproximar. Muitos não são nem nunca serão praticantes regulares o ano inteiro, mas nem por isso deixam de ser crentes; o mesmo se passa com o culto do Espírito Santo. O verdadeiro problema actual, do ponto de vista religioso, creio que muitos já o entenderam, a este respeito há bons trabalhos na diocese, não é o agnosticismo nem o ateísmo, mas o indiferentismo religioso. O agnóstico, porque não tem o problema resolvido, está aberto à discussão, o ateu, porque discutiu e já decidiu, tem o problema resolvido, o indiferente não se interessa pura e simplesmente.
Creio ser verdadeiro dizer-se que cada qual vê e retira da romaria o que consegue ver e o que precisa, eu vou apenas abrir-me e revelar o que vi e retirei dela. Para já, aquela semana, que quase me matava de cansaço, fundia-me com a natureza, sentia-me um só com ela e comigo. Afinal de contas, a romaria resume-me o pouco que é preciso ter para se ser: ser acima de ter, fazer acima de dizer, dar acima de receber.
Preparação da viagem
Fui a primeira vez na romaria por curiosidade, mas acabei devoto. Às outras duas, fui do princípio ao fim por pura devoção. Muitos vão para cumprirem promessas próprias ou promessas de outros que não podem ir, de pais (mães incluídas), de amigos, ou até de familiares já falecidos. Outros vão porque o amigo vai ou até para estar descansado do patrão ou da ‘patroa’ (vide mulher) uma semana. Não fui para descontar pecados, nem cumpri o ‘se vais uma vez tens que ir pelo menos mais duas vezes’, ou sequer ‘quem mais reza ou pena mais, tem mais pecados’. Confesso que não sei nenhuma oração, tirando o Pai-Nosso e a Ave-Maria. Mas adoro a Ave-Maria dos Romeiros (Levantada) e as orações que se fazem nas igrejas.
Não podes dizer que vais na romaria sem que o mestre te aceite. Este foi o meu caso. Como é o de quase todos. Tens de ser católico e praticante. Mas sei que, dependendo dos mestres, vai gente sem ser católica. Assisti a um debate curioso no interior de um rancho, não no meu, em que o contramestre defendia que deveriam ser admitidos no rancho todos os que quisessem. Somos todos filhos de Deus: dizia ele.
Nem podes ir sem estar preparado: orações, cânticos e regras de conduta. Foi também o meu caso, se bem que não fui a todas as reuniões. Dediquei-me a preparar o traje: o bordão era de araçaleiro. Enorme, nodoso, maciço, pesado que nem o cajado de Moisés no Monte Sinai. Um bordão que, quem por engano nele pegasse, às vezes na pressa da saída das igrejas, me vinha logo entregar: pega que esse é teu, irmão! E viram logo que era o meu na segunda ou terceira igreja em que parámos para fazer oração. Pertencera ao bisavô materno dos meus filhos. Não sei se foi alguma vez de romeiro com ele. A viúva quis que eu o levasse.
Hoje em dia um bordão é um acessório dispensável, serviu outrora, os caminhos eram quase todos de terra, mas já só serve para cumprir a tradição. Além do bordão, levei uma saca enorme, incómoda, imprestável, as alças doíam-me nos ombros, além do mais, pouco cabia nela. A função dela não se cumpriu: a de levar comida até ao encontro de famílias. Nos dias que correm, por promessa, vai cada vez mais gente ao encontro do rancho levar o pequeno-almoço, lanche, almoço ou pequenos refrescos. Noto uma diferença entre a primeira vez que fui, há uns vinte e três para vinte e quatro anos, e a última, há cinco: há mais gente a ir oferecer refeições.
O xaile e o lenço, também da bisavó materna, são dos acessórios mais adequados que conheço para levar na romaria. O xaile protege do vento e da chuva. Uma chuvinha miudinha nem chega a molhar o xaile. Às vezes, quando chove bastante, tem de ser seco na boca do forno. Era assim há vinte e quatro anos. Faziam-no enquanto o romeiro descansava. Agora, muita gente dispõe de máquina de secar. As calças devem ser confortáveis, largas, de modo a que, ao roçar, não causem ferida entre as pernas. Uma das peças, se não a mais importante mas a mais melindrosa, é o que se leva nos pés. Calçado e meias. Deve-se levar calçado já ‘acamado’, habituado ao pé. Em caso algum, levar o que se comprou recentemente. Quem o faça, corre o sério risco de ter problemas na romaria.
Estar em forma, incluindo habituar o pé ao calçado, é tão importante que há mesmo quem comece a fazer caminhadas a pé, longas caminhadas aos fins-de-semana e à noite, muito tempo antes da saída do rancho. Aliás, creio que a maioria o faz. Até porque, hoje em dia, a maioria dos romeiros, ao contrário do que sucedia com os pais e os avôs, leva uma vida sedentária. Conheci romeiros que desistiram da romaria por causa dos pés. As peúgas não podem ser grossas ou largas porque causam bolhas.
Além do que se calça, calçado e peúgas, é importante saber andar correctamente. Não basta estar em forma física para chegar ao fim da romaria. Conheci colegas, jogadores de futebol, que desistiram. É preciso saber colocar bem o pé no chão, não parte do pé, mas todo o pé, equilibrar o corpo, distribuir bem o peso. Incluindo o peso do que se carrega às costas. Se se vai na fila do rancho do lado do passeio, o rancho segue sempre pela direita, faz-se mais peso sobre a perna direita (o rancho anda à volta da ilha no sentido dos ponteiros do relógio com o mar à esquerda), há que, para descansar, aproveitar troços do caminho para trocar de modo a equilibrar.
As paragens para descanso, geralmente de curta duração, além das previstas para as refeições, podem fazer mais mal do que bem. A explicação é biológica, pelo que é preferível, para mim é assim, abrandar o ritmo a parar completamente. Quando surgem bolhas, mais vale furá-las de imediato com uma linha, deixando-a, no entanto, ficar para ir drenando o pus. Familiarizados com os cânticos, conhecedores das rezas, preparados com xaile, bordão, saca, lenço, terços e calçado, é ainda preciso, sobretudo, estar com a mente e o corpo em boa harmonia. Estar preparado para a dureza do caminho. No caso do rancho da Matriz, saímos na madrugada de Sábado para Domingo e fomos dormir à Feteira Grande. No primeiro ano, debaixo de sol intenso, no terceiro, debaixo de chuva torrencial. Uma penosa estirada de mais de quarenta quilómetros. Há quem ache que se deveria andar menos no primeiro dia. Que se deveria andar gradualmente. No primeiro ano que fui, ficámos na Salga, o que era uma distância relativamente menor. Uns cinco quilómetros a menos. Porém, para quem esteja cansado, como foi o caso daquele duro ano de chuva inclemente, cinco quilómetros a mais são muitos quilómetros a mais. Mas no rancho da Matriz é assim mesmo. Temos de estar preparados para pôr em prática outra lição de vida: passada a passada, com ou sem dores, molhado ou seco, com frio ou calor, com ou sem fome, o importante é chegar ao destino e ir pelo caminho desfrutando o mais que se pode o caminho. E nunca desistir. Desejando um pouco de fresco, não muita chuva, nem muito calor, sem muita fome, com o mesmo traje, todos irmãos, chegando a um destino comum: regressar à Matriz dali a oito dias e regressar à casa do Pai depois da expulsão do Paraíso, quando chegar a nossa hora.
A viagem
A primeira madrugada é diferente de todas as outras sete. Mas o despertar é sempre de madrugada, seja o que for que São Pedro nos dê, manhã bonançosa ou borrascosa, é o tempo que teremos pela frente.
Aí pelas três da manhã, a mente vagueia, o corpo fica ansioso, a cama parece que queima, o colchão tem brasas e neste desassossego pulo da cama. Olho em redor, a saca (em outros ranchos dão-lhe outro nome) está feita, o bordão está atrás da porta da entrada, o xaile e os terços estão sobre a cadeira do quarto de cama. Toca para a missa dos romeiros. A minha companheira ajeita-me o lenço e o terço. Abraça-me. Vou dar um beijo aos meus filhos que dormem. O Júlio, num quarto, a Filipa, noutro. Saio de casa sozinho. Chove. Puxo o lenço para a cabeça. Terços, levamos dois, mas levo mais um a pedido da bisavó materna dos meus filhos. O xaile, de um azul esverdeado, o lenço garrido das mulheres antigas e o bordão, envernizado e nodoso. Eles querem vir comigo daquela maneira e eu não me importo, gosto até que venham comigo daquela maneira.
Aperta-nos o coração quando saímos de casa, só se pode seguir em frente, é como estar num avião depois de descolar, não se pode voltar atrás, tem de ser, foi essa a primeira lição de vida que me foi moendo o juízo ainda antes de entrar na igreja acaculada de gente. O ritual de despedida enternece e contagia namorados, maridos, sogros, filhos, amigos, conhecidos e curiosos.
Há que disfarçar. É só uma semana. Não custa nada a passar oito dias. Apesar disso, a gente dissimula, mas há qualquer coisa em nós que nos trai, um esgar, um sorriso “condutado”, não sei bem, e quem sabe ler estas coisas lê de trás para a frente que os nossos corações ficam sem saber onde ficar. Se com o rancho e sem a família, se com a família mas sem o rancho. Sentimos que estamos a ser lidos. Nem todos serão assim, mas eu fui assim.
As pessoas lidam bem com as chegadas e mal com as partidas. Nem mesmo quando se diz adeus a quem parte para a vida eterna, ainda que acreditemos no Além. Uma partida é sempre algo que acabou e uma chegada é algo que principiou. E assim sucede no nosso rancho. Claro que nem todos sentem o mesmo da mesma maneira. Os miúdos indo com os pais, choram ao despedir-se das mães, os adolescentes não se querem separar das namoradas e eu que casara de fresco já sentia saudades da minha mulher. Vi também os que se sentiram livres por uma semana do patrão, da mulher e dos filhos. Sei que houve.
Ao transpor a soleira do guarda-vento da igreja, onde fiz todos os sacramentos de cristão vivo, menos o do crisma e o do baptismo, menino da cruz ensonado à frente, guias com ar resoluto ao lado, duas filas lado a lado, senti-me cheio. Percorrêramos a passo apressado o corredor da igreja feericamente iluminada, a voz dos irmãos do rancho ainda ecoava na igreja com vibrações que fazem eriçar até os pêlos da pele dos mais insensíveis. Meu Deus, como aquilo era belo! Naqueles momentos, aquele simples canto inventado não se sabe por quem, naquele momento de despedida, cantado por vozes simples quase sem voz que valesse a pena sair da cama às três da manhã para ouvir, em nada ficava a dever em beleza ao canto dos grandes mestres.
No rancho vão pessoas normais, não seguem santos, nem em nenhum outro rancho, presumo, ponho à confiança a mão no lume acerca disso, os santos ficam atrás, como sempre empoleirados nos altares das igrejas de cada rancho. Nem connosco segue gente que se dê tão bem como Deus e os Anjos, até há quem evite falar-se, nada de irremediável, pois muitos no decorrer da romaria reconciliam-se. Os que se dão mal, escolhem outro rancho para irem. No rancho seguem crianças náufragas das mães, adolescentes já saudosos dos colos das raparigas (é assim que se referem às namoradas), gente de meia-idade sem ilusões da vida ou ainda com algumas ilusões da vida, e algum mais entrado na idade.
Uma coisa era certa, aquele grupo aparentemente coeso mas ainda desconchavado, irá entrar orgulhoso ao meio-dia em ponto do Domingo seguinte e transpor aquela porta. E, mesmo que o não digam boca fora, os irmãos nunca mais se deixarão de tratar por irmãos. Quer do rancho façam parte professores doutores, mestres pedreiros, desempregados, estudantes, seja o que for que forem na vida. Que se passa? Há muita maneira de nós nos encontrarmos. A dor e o sacrifício são apenas duas maneiras para lá chegarmos. Vou contar o que se passou comigo.
A despedida mesmo
O rancho despede-se até à quinta-feira seguinte das últimas famílias que o acompanham, no início do outeiro do Lameiro, já à saída do casario da Ribeirinha. Eu já me havia despedido dos meus em casa. Mas vi como os outros o fizeram. Vi, por entre o olhar saudoso das mulheres, um não sei quê de olhar de inveja e pus-me a pensar por que razão elas não poderiam vir connosco. Encontrei, assim o presumo, ao fim da terceira romaria, uma razão. Fraca, se calhar cai logo à primeira pergunta de uma mulher inteligente, mas ainda assim uma razão. É claro que podem ir, e eu até gostaria de poder ir numa romaria destas, mas talvez fosse melhor deixar-nos ir por mais uns tempinhos sozinhos. Confiem em nós. Mesmo que não levem consigo filhos no rancho, os homens naquela semana fazem de pai e de mãe. E sentem-no. As mulheres continuam a ser o centro: Nossa Senhora é o centro. O trabalho feminino nas margens do rancho, quando o rancho passa, na casa dos irmãos, nas igrejas, no encontro de quinta-feira, na chegada, é feminino.
Retomando a participação feminina, devo dizer o que penso e o que penso é simples: sendo os homens e as mulheres filhos de Deus, homens e mulheres terão de ser forçosamente iguais em direitos e em deveres. Não há volta a dar. Raciocínio límpido como a água das nascentes que brota da ribeira nas Lombadas. Não por meu mérito, mas por si mesmo. Todavia, ironicamente, na igreja ainda impera a desigualdade: as mulheres, só por serem mulheres, não podem receber o sacramento do sacerdócio; os sacerdotes, só por serem sacerdotes, não podem receber o sacramento do matrimónio; e os separados, por serem separados, não podem receber o sacramento da comunhão. É em nome de uma igreja igual que eu vejo as romarias integradas.
Primeiro dia: da Matriz à Feteira Grande
(Domingo)
A ladeira do Lameiro até ao miradouro de Santa Iria é em terra batida, e era o caminho primitivo que ligava, até ao século XIX, o Norte (nascente) à Ribeira Grande. Defeito do aprendiz de História, tenho o juízo a variar para a História, quando deveria estar concentrado na oração. O rancho segue disperso. Começo a sentir-me cansado. A sola das sapatilhas resvala. Agarro-me ao bordão. Olho em redor: pastos. Canas à beira do caminho. As que a gente usava para talhar nunus, instrumento musical infantil da família das flautas. Tenho que desligar do que me rodeia. Não consigo. O dia desponta. Meu Deus, se já me doem os pés agora, o que não será mais à frente?
O rancho reagrupa-se no fim do caminho de terra. Que vista soberba! O dia já clareou por completo. Tento descansar. Acordara cedo.
Descemos a Ladeira da Velha. O rancho come qualquer coisa lá em baixo, perto da entrada da praia dos Moinhos. Comemos da saca. Um ou outro oferece qualquer coisa ao irmão do lado. Formam-se grupos espontâneos.
O rancho desfila em plena luz do dia pelo Porto Formoso fora, em direcção à igreja de Nossa Senhora das Graças. Cada um sabe o lugar que deve ocupar no rancho. Isto ficara previamente combinado antes da saída. Por qualquer razão, às vezes disciplinar, o mestre pode alterar a ordem. A Ave-Maria levantada ressoa pela rua. Assomam pessoas às portas e às janelas. Quantos são? Claro que levamos sempre mais três. E eu levava mais os que me emprestaram o lenço, o xaile, o terço e o bordão. De onde são?
Linda igreja, a de Nossa Senhora das Graças. E fica num alto, sobranceira ao mar. Imponente. Edifício do século XVIII. Diz-se que um batelão com madeira para os bancos daquela igreja se afundou ao largo da praia dos Moinhos e que, quando o mar está agitado, vêm à tona de água pedaços de madeira. Rija. Disseram-me uma vez. No adro volto-me para a baía. Ando distraído. Só mais à frente, quase a chegar aos Fenais da Ajuda, depois de termos parado em São Brás, Maia e Lomba da Maia, vencido pelo cansaço, comecei a ver os pastos, as canas e o mar de uma maneira bem diferente. Continuava a vê-los e até via mais, mas sentia mais e começava a ver-me como se eu e eu fôssemos dois. Eu via-me a andar e via-me a ser a erva do pasto e o canavial e o mar.
Por vezes, sentindo dores difíceis de suportar, só me apetecia atirar para bem longe o pesado bordão de araçaleiro, esconder a saca ou comer tudo o que tinha para aliviar o peso. Estive tentado a atirar tudo isso por uma rocha abaixo, num caminho de terreiro rente ao mar, quase à entrada dos Fenais da Ajuda.
O almoço, oferecido por irmãos, por alma de familiares falecidos, foi nos Fenais da Ajuda. As sopas, a carne guisada com batatas e o vinho souberam-me ao melhor que havia à face da terra. Descansei, mas percebi que seria melhor não o ter feito. Temos que andar de novo!, diziam uns. O que ainda falta até chegarmos à casa do irmão!, diziam outros. E outros ficavam calados.
À medida que o dia avançava, que deixávamos mais uma igreja “feita” para trás, pensava nos meus filhos, na minha mulher, sentia saudades deles. Cada passada mais que dava, cada vez mais me afastava da Ribeira Grande, e via-os ao longe, quase como se eu não tivesse mulher nem filhos. E via-me no meio de um rancho, é certo, mas apesar de estar com gente, estava sobretudo comigo.
Comecei não só a entrar mais em mim mesmo, mas dei-me conta, já quase a chegar à Feteira Pequena, que estava a entrar também num tempo que tinha menos a ver com o relógio do que com o número de passos entre a igreja que acabáramos de “fazer” e a próxima que iríamos “fazer”.
Um pouco antes de vencer o inclinado outeiro à entrada da Feteira Pequena, no último troço, literalmente a rastejar, sem pinga de força, e de me atirar para o chão húmido, percebi, ou melhor pressenti, que ia continuar a ser ao longo dos próximos sete dias o que sempre fora, mas que ia sê-lo de maneira diferente da que costumava ser. Os meus sentimentos, quaisquer que fossem, em dois ais encontravam-se. A sensibilidade lia tudo ao meu redor com outro olhar. E eu estava mais comigo. E rezava assim.
Segundo dia: da Feteira Grande à Água Retorta
(Segunda-Feira)
Quando se julga que nem sequer se consegue dar mais um passo que seja, que já se deu tudo o que havia a dar, que a vontade nos abandonou, muitas vezes ainda se pode dar mais qualquer coisa. Dorido dos músculos, partido dos ossos, com os ombros massacrados, moído dos pés, a noite não fora suficiente para descansar o cansaço. Dormira que nem uma pedra e parece que também ressonara. Pobre do meu companheiro de quarto. E eu que julgava que não ressonava. Verifiquei que começavam a despontar umas duas ou três bolhas nos pés. Na primeira paragem do rancho, ataquei o mal pela raiz com uma agulha e linha branca. Não sei por que razão, mas dizem que a linha branca é a melhor.
Fazendo contas aos quilómetros a andar, deveríamos sentir menos cansaço ao fim do dia. O segundo dia era mais curto do que o primeiro, mas a acumulação de cansaço tornou-o mais penoso. E até nos pareceu mais longo. Mais uma igreja “feita”, a seguinte por “fazer”, vi-me a subir da Pedreira para a Água Retorta. Ninguém passa à minha frente!, advertiu o nosso mestre: Ildeberto Piques Garcia.
Pareça o que parecer, não me canso de dizer que o nosso Mestre é um grande Mestre. Sei pelo que me dizem, e não vejo motivos para não acreditar, que, na quase generalidade, os nossos ranchos têm grandes Mestres. Cada rancho é um espelho do seu. A maneira de ser de cada um, o modo como interpreta as regras, como conduz o rancho, varia de rancho para rancho. O meu Mestre é uma pessoa serena. É amigo de todos por igual. É bonacheirão. Homem talhado para conduzir homens. Costuma dizer que há momentos para tudo. Já é romeiro desde os dezasseis anos.
O nosso rancho, com uma média de meia centena de irmãos, não é pequeno nem grande. Há ranchos que ultrapassam os cem irmãos, como é o caso do de Rabo de Peixe, que é o maior, seguindo-se nos últimos anos o da Conceição, da Ribeira Grande. Depois, há os pequenos, com trinta e poucos irmãos.
Para sair no rancho da Matriz não é preciso ser paroquiano da Matriz, basta ser aceite pelo mestre. Muitas vezes sucede que o candidato, ao ir no rancho, o escolhe por lhe dar mais jeito na altura em que o rancho sai. Mas também pode dar-se o caso de querer ir por ser a terra da noiva ou a de amigos e conhecidos. Ainda se conhecem casos de um irmão querer sair noutro rancho por não querer ir com alguém com quem não se dá bem. Na área da Ribeira Grande, com cinco paróquias, é vulgar encontrar paroquianos de umas a irem em ranchos de outras. Mas a regra, ao que parece, é a fidelidade ao rancho. No entanto, é uma regra não expressa e cada vez menos observada. Porque, dizem, o que importa é a romaria. Há irmãos que fazem mais do que uma romaria, conheço alguns que chegam a fazer cinco. Num rancho são mestres, nos outros, são simples irmãos.
O Irmão-mestre é benevolente. É respeitado por todos porque é justo. Não é fácil dirigir um grupo de pessoas com uma diferença de idades como a que se verifica nos ranchos, há grupos mais jovens do que outros, os mais novos andarão pelos dez anos e os mais velhos pelos sessenta, com feitios e origens sociais e culturais distintas. Mas ele fá-lo bem. Ainda assim, das três vezes que fui, só o vi uma vez levantar a voz e já no último dia da romaria, quando um irmão resolveu sair do rancho num dia e entrar no seguinte sem lhe pedir autorização. Todo o rancho em silêncio lhe deu razão. Nem mesmo o irmão infractor levantou voz. Normalmente, um olhar ou uma frase curta são o suficiente para se fazer obedecer.
Dá a cada um conforme acha que cada um necessita; assim, quando fui pela primeira vez de romeiro, teve uma sensibilidade especial para comigo. Mas não o fez só comigo, fê-lo com todos. Quando alguém oferece algo ao rancho, todos têm por igual, sejam pequenos ou grandes, novos ou velhos. E o mestre é o primeiro a dar o exemplo. Quando alguém quer desistir, sobretudo as crianças que, volta e meia, pedem pela mãe, ele anima-os: irmãozinho, que é isto agora, faz-te um homenzinho. Quando vê que alguém está mal, aconselha a ir ao médico. Tem sempre uma palavra de encorajamento. Quando reza, reza, quer as rezas tradicionais, quer as outras. Nos momentos dedicados à reflexão, o nosso mestre faz-nos mesmo pensar.
É versado nas escrituras, tem uma boa voz e é empenhado em uma mão-cheia de movimentos católicos. É responsável não só pelos romeiros, mas também pela capela, pelos cursos de cristandade e ainda tem tempo para ser um empresário de sucesso.
O nosso irmão Luís, o contramestre, é o braço direito feito à medida para o nosso mestre. É um homem de meia-idade, bonacheirão, pachorrento, brincalhão quando acha que deve ser, fala a linguagem da maioria dos irmãos, colecciona orações para cada igreja, tem igualmente uma voz bonita. Os dois completam-se bem. O irmão despenseiro, nas três vezes em que fui, calmo, poderoso, era a nossa ligação com as mercearias e as farmácias. Sem ele, a romaria tornar-se-ia mais difícil.
Se a memória não me atraiçoa, levámos umas boas duas horas, da Pedreira ao apeadeiro das camionetas em Água Retorta. O rancho vai atrás do mestre, ninguém passa à minha frente!, avisa, seguindo num passo certinho. Cada um a rezar para si em silêncio. Cheguei lá cima cheio de força. Pensei até que seria bem capaz de voltar à Feteira Grande e regressar à Água Retorta.
Quando o rancho lá chegou, demos com alguns irmãos do rancho da Conceição à nossa espera. Referindo-me apenas aos ranchos das cinco paróquias da cidade da Ribeira Grande, devo dizer que o rancho da Matriz sai no Domingo a seguir ao dos Senhor dos Passos, uma semana depois dos ranchos da Conceição e da Ribeira Seca se recolherem. O da Ribeirinha é o primeiro a sair. Sai logo na primeira semana das romarias. O rancho de Santa Bárbara sai antes do da Matriz.
Os nossos irmãos da Conceição traziam-nos um refresco. Haviam pedido autorização ao nosso irmão-mestre. Normalmente, ele aceita. Acho que nunca o vi recusar. Creio que os da Conceição retribuíam a amabilidade que os irmãos do nosso rancho haviam tido duas semanas antes. Haviam ido ter com eles a Ponta Garça. Os refrescos são sempre bem-vindos. Há quem pense que são em demasia, talvez até sejam, no nosso rancho não são, o nosso irmão-mestre é judicioso nisso. Muitos lançam este julgamento quando comparam o que hoje se faz com o que em outros tempos se fazia. Mas os tempos são outros. Pessoalmente, não vejo como, na sua justa medida, uma cerveja, uma laranjada ou uma água, depois de uma subida de duas horas, possa prejudicar o espírito da romaria.
Estirei-me ao comprido na relva. É um pequeno conforto no enorme desconforto que se sente. Aliás, além da dor, do cansaço, das saudades de casa, o desconforto acompanha-nos em toda a romaria. Só quem lá vai, sabe o que significa. Sabem o que é sentir arrepios de frio e ter o xaile molhado no corpo? Sem poder tirá-lo? Sem poder ir para o calor de uma cama? Ou ter dor de barriga, porque se molharam as sapatilhas quilómetros antes, sem poder trocá-las? Ou fome. Ou sede. Ou frio. Ou calor. Desconforto total.
O irmão o que vai querer? Trouxeram-me uma água. O irmão-mestre, porque era ainda de dia, deu-nos uma meia hora antes de descermos à freguesia. Como chovera a potes no dia anterior, algumas mulheres mandaram uma muda de roupa. Na hora de levantar, de prosseguir caminho, o rancho juntou-se à volta do irmão-mestre e agradeceu aos irmãos que nos haviam oferecido o refresco.
O rancho formou-se. O irmão de trás ajeitava o lenço do irmão da frente. A compor o xaile, o terço. Outros ajudavam a meter a saca às costas. Gestos impensáveis no dia-a-dia? Adeus, rancho a descer, Ave-Maria Levantada, e o arrepio de sempre, e eu subitamente fico sem forças. Começo a ver o rancho a afastar-se. Meu Deus, há pouco sentia que tinha forças para ir e vir da Feteira Pequena, agora só penso em deitar-me contra uma barreira! Irmãozinho, faz a diligência, tens de ir!, disse-me o irmão que ficou para trás para me acompanhar. Faz de conta que não me vês. Eu vou pedir a Deus para me tornar invisível! A barriga das pernas doía-me como se estivesse a ser apertada por mão de gigante.
E fui indo, mesmo sem querer ir, só porque tinha de ir. Vá lá irmão, estamos quase a chegar à igreja. A igreja de Água Retorta fica a meio da freguesia, mas pareceu-me ficar no fim do mundo. E eu só dizia: com o corisco, onde raio foi esta gente fazer a igreja! Quando finalmente lá cheguei, o rancho ia saindo. Irmão, temos que ir para a Casa do Povo. Não posso mais. Podes, respondeu-me. Deixa-me aqui na igreja? Não posso. Tens que ir comigo. E lá fui, devagar, muito devagar, a subir, que é bem melhor do que descer, porque dizer que para baixo cabra manca faz viagem é para quem nunca andou num rancho, e vejam lá isso, fui passando um irmão, outro irmão, ainda mais cambados do que eu. E se não fui o primeiro a chegar à Casa do Povo, não fui o último nem dos últimos, fui dos primeiros.
Milagre não foi, isso é para santos e eu sou pecador como qualquer outro, um amigo médico explicou-me mesmo cientificamente o que poderá ter acontecido. Seja o que for que tenha sucedido, passei por uma experiência inédita para mim, verifiquei que afinal o corpo reage à fadiga de forma bizarra. E retirei daí uma outra lição para a vida. E bem simples: quando se julga ter tudo, de um momento para o outro perde-se tudo. Quando se julga que já se atingiu o limite, ainda poderá haver mais para dar.
Um enorme salão, mesas postas, água quente, começo a tremer. Tens febre, irmão. Olha, tenho aqui um Aspegic. Toma e vais ver que amanhã estás novo em folha. Mas come qualquer coisa para calçar o estômago. Comi sem fome. A colher tremia-me na mão. Tomei o Aspegic dissolvido em água. À excepção de duas ou três crianças recolhidas em casas, o resto do rancho dormiu a lastro em colchões da tropa. Na minha sala devem ter dormido uns vinte irmãos. Custei a adormecer. A meu lado ressonavam. Na outra sala, ressonavam. Um ria-se do ressono de alguém: parece um trombone. A gargalhada era geral. Até que, suado, adormeci. Custou-me a levantar pelas três e pouco da manhã mas, aparentemente, a febre passara.
Terceiro dia: de Água Retorta às Furnas
(Terça-Feira)
O rancho avançava noite escura dentro em direcção ao ramal do Faial da Terra. A noite estava estrelada, mas fazia frio. O xaile dava jeito: era quente. Naquele ano, a Páscoa foi baixa. O menino da cruz ia dormindo em pé, encostado a um dos guias. Um ou outro irmão saía do rancho para fazer as suas necessidades.
Com as igrejas de Água Retorta e do Faial da Terra “feitas”, para trás, depois de termos comido qualquer coisa à entrada do Faial da Terra, ainda a freguesia dormia, só tivemos cães por companhia, o rancho meteu-se a subir do Faial da Terra em direcção à Povoação. O vento soprava forte do lado do mar. Era uma grande ventania. Conforme as curvas do caminho, ora éramos soprados para um lado da estrada ora para o outro. Tínhamos que fazer força nas pernas para não cairmos por alguma barreira abaixo. O cansaço era tal que, não conseguindo rezar o Pai-Nosso e a Ave-Maria, decidi transformar, não sei se muito catolicamente, a dor em oração. Não me julguem um católico, (crente tem outra conotação) de pedra e cal, tenho tido e tenho muitas dúvidas. Tenho hesitado e, mesmo no rancho, hesitei. Acho que é normal duvidar. Será que Deus existe mesmo? Às vezes, durante aquelas três caminhadas, não só acreditei nele como julgo ter sentido a sua companhia entre o rancho. E reparei que o mesmo pensavam outros irmãos. Ou melhor, senti. Em outras ocasiões, não senti nada. E no último ano, mas aí foram as circunstâncias da vida que ditaram a dúvida, levei meses a voltar a acreditar nele.
Naquela noite o rancho iria pernoitar nas Furnas. Estava já tudo combinado, cada rancho já sabe onde fica, onde ouve missa, onde come, onde dorme. O secretariado trata disso tudo. Os irmãos podem ficar descansados, nada lhes falta, segundo diz repetidamente o nosso irmão-mestre. Assim, podemos dedicar-nos às nossas orações. Cada qual terá as suas. Oração canónica, oração tradicional, ou oração conversa tu cá tu lá com Deus e consigo próprio. Penso que, ao longo da romaria, todos fazem um pouco de cada uma daquelas maneiras de orar.
O dia das Furnas é o dia do calvário das Lombas da Povoação. Por isso mesmo, é um dia bem temido pelos irmãos. Mas é também o dia em que o rancho, que tem sempre o mar à sua esquerda e a terra à sua direita, atinge o sul da ilha. Para os da Matriz é assim. Sendo penoso subir o piso de cimento das Lombas, é ainda assim menos penoso do que descer a Gaiteira da Ribeira Quente. E eu ainda a desci na primeira vez que fui no rancho da Matriz. Já nas últimas vezes, como o rancho desistiu de ir lá baixo, fez a oração cá de cima, foi menos um calvário a vencer. Mas também vi como a gente de fora nos vê. A dor do esforço de subir as Lombas é tanta que, ao verem a nossa dor, nos fazem sentir a santidade do nosso sacrifício. E eu senti isso e sei que alguns dos meus irmãos romeiros também o sentiram.
Mas só a antecipação do quarto dia, um pouco mais fácil, não obstante o obstáculo da Gaiteira da Ribeira das Tainhas, dá-nos ânimo. O cansaço acumulado, no entanto, fizera já baixas no rancho. Por um lado, o grupo estava a ficar cada vez mais coeso, por outro, alguns irmãos haviam desistido. As refeições em conjunto, o andar juntos, o dormir juntos, o ser visto pelos outros juntos, fez de um grupo quase desarticulado um grupo coeso.
Nas Furnas, já combinado com o padre, houve missa, em que o rancho participou activamente. Fizemos uma festa linda. Uns leram as escrituras, outros ajudaram à missa e todo o rancho cantou. O irmão-mestre, talhado para as funções, nestas ocasiões excedeu-se. O sacerdote era irmão romeiro e identificava-se como romeiro da Matriz. Fora o seu primeiro rancho. Mas nem todos os sacerdotes são romeiros e alguns deles são até avessos à romaria. Alguns acham que há um desvirtuamento, outros acham que os romeiros são só católicos naquela semana quando deveriam sê-lo o ano inteiro. Outros ainda, e tive vagar para discutir isso mais tarde, discordam da ênfase dada a Nossa Senhora em detrimento do fulcro do cristianismo, a Santíssima Trindade. E que a penitência deve realçar o servir em vez do servir-se. Que são as acções mais do que as orações e que não é a quantidade de orações que faz a sua qualidade. Algumas destas objecções serão válidas, outras nem tanto ou mesmo nada. Não vou discuti-las, vou apenas repetir o que todos sabemos: a romaria é um culto popular. Ao ir na romaria, sou convidado e como tal devo comportar-me. E mais, depois de cumprir uma meia dúzia de regras, a romaria dá-me espaço para fazê-la à minha maneira. Se há religião mais tolerante no mundo será a dos romeiros e a do Espírito Santo. Nelas, cabem todos.
Quarto dia: das Furnas a Água de Pau
(Quarta-Feira)
Ao terminar o dia de Água de Pau, temos consciência de que atingimos o meio da romaria. Mas o rancho está receoso da Gaiteira. E teve razão. Duas desistências durante a descida. Um irmão ainda foi ao Centro de Saúde. Não foram as bolhas, foram as feridas entre as pernas. Uma chaga viva. Nestas ocasiões, o irmão mestre permite ao rancho descer como entende.
Não receava tanto a Gaiteira como a aproximação das vilas e, sobretudo, da cidade, porque desejava ardentemente sossego. O segundo e o terceiro dias haviam sido os melhores. Encontráramos pouca gente pelo caminho e a pouca gente que encontráramos era gente simples, que acreditava na romaria. Via-se. E muita Natureza: havia dado para estar comigo.
Ainda assim nem tudo foi mau, antes pelo contrário, esperava-me uma surpresa já dentro da freguesia da Ribeira das Tainhas: vi aí como é que os mais novos recebem a tradição dos mais velhos. As avós, sobretudo, com os netos ao colo ou pela mão, apontam para o rancho e segredam-lhes: ali vai o Jesus. E vi o beicinho das crianças, como que em sinal de aprovação, aceitarem o ensinamento. Aposto que aquele ‘ali vai Jesus’ nunca mais será esquecido. Confesso que me senti importante. Lembrei-me do que diz São Paulo sobre os filhos de Deus serem por isso mesmo Deus e pensei que a religião popular não era assim tão sem sentido evangélico.
Mas regressando à Gaiteira, o grupo provou que era já um rancho de irmãos. Na provação da descida, convém relembrar que já o havia feito nas Lombas da Povoação, todos ajudaram todos. O grupo provou ser um só com um só objectivo: chegar ao ponto de partida. Quem precisasse de água e não tivesse água, lá estava um irmão a oferecer água. Ou tivesse fome, e lá estava um irmão a oferecer uma laranja, uma bolacha. Ou de um penso ou de uma agulha. O grupo, que a princípio eram três: o das crianças, o dos adolescentes e o dos adultos, tornou-se no rancho da Matriz de Nossa Senhora da Estrela da cidade da Ribeira Grande. E com que orgulho o diziam quando o perguntavam. Esbateram-se as diferenças. Até parece que desapareceram.
Ao desfilarmos pela Ribeira das Tainhas em direcção ao centro de Vila Franca do Campo, era evidente para os de fora do rancho que connosco seguiam o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E ao transmitirem-nos de fora do rancho a certeza da presença desta companhia invisível no seio do rancho, o rancho espelhou com nitidez essa mesma certeza para fora de si. Deus, como me senti feliz!
O caminho percorrido entre a ermida, ao fim da Gaiteira, e a primeira igreja deu para ver como a tradição se transmite e deu ainda para demonstrar, o que pode soar a algo insincero ou falso, uma outra coisa: em como estando eu no rancho e sendo um com ele, ainda assim, não deixava de ser eu. Vi como a minha vida mudara, antes era filho e agora era pai e marido. Vi, na segunda romaria, como a vida de casado não era fácil, que a vida profissional também não era fácil. E se já me pesava na segunda romaria o peso das responsabilidades, na terceira mais me pesou. Ofereci-me a Deus. A minha oração era uma só: Deus, abre os nossos corações! Foi essa a única oração que fiz em toda a terceira romaria.
Revi o que fizera de mal, o que fizera de bem, como um católico é suposto fazer, e quis salvar o que podia e lembrei-me de uma citação por alto, creio que de um americano que dizia mais ou menos isto: Deus dá-me o discernimento para saber mudar o que é possível, para não tentar mudar o impossível e a sabedoria para saber distinguir um do outro.
Quinto dia: de Água de Pau aos Arrifes
(Quinta-Feira)
Não porque existam mais caminhos iguais às Gaiteiras, o caminho é todo chão, mas, para mim e para muitos, é o pior dia de todos. Ainda que seja o dia do encontro das famílias. Não pelas pessoas, mas pelo ruído à nossa volta. E chega a ser perigoso. À medida que nos aproximamos de Ponta Delgada, o trânsito cresce. O rancho redobra a sua atenção. Já houve casos de atropelamento. Aliás, este ano (2011) vi que os ranchos já levavam coletes reflectores.
Na primeira vez que saí na romaria, já lá vão vinte e quatro anos, devo confessar que me senti um intruso em Ponta Delgada. Perguntei a outros romeiros e eles confessaram-me ter sentido o mesmo. Mais do que um intruso, uma relíquia do passado. Muitas pessoas nem sequer olhavam para nós, voltavam-nos as costas. Outras olhavam com desdém. Com ar trocista. Isto é uma vergonha para os turistas! Que pensarão eles de nós? Que somos uns atrasados. Na segunda, mudara. Entretanto, da primeira à segunda vez, havia passado mais do que uma década e a Ilha já não era a mesma. Para o melhor e para o pior. Até mesmo as intenções das orações haviam mudado, dava-se agora mais ênfase aos casais desavindos, às separações e aos divórcios. Na primeira, falava-se de vícios tais como o do álcool, na segunda já se falava do flagelo da droga.
Se na primeira tomara uma só vez duche, na segunda não havia casa que não tivesse casa de banho. Na primeira, cheguei a dormir em casas sem luz eléctrica. Já na segunda, não havia casa sem televisão, máquina de lavar ou de secar roupa. O parque automóvel aumentara igualmente. E já havia ranchos urbanos. Ponta Delgada mudara. Alguns por convicção. Outros talvez por dar jeito ao negócio. Outros por tradição. Muitos dos que iam no rancho eram filhos dos camponeses e mestres dos ranchos de há vinte, trinta ou quarenta anos, eram funcionários públicos, professores, gerentes, estudantes.
Cada irmão do rancho prepara-se para o encontro das famílias com um misto de alegria e de tristeza: quer e, ao mesmo tempo, não quer. Aliás, muitos há que, quando chegam ao fim, desejam continuar. E muitos vão em outros ranchos, como já disse.
Não nos interpretem mal, queremos ver os filhos, a mulher, os pais, os irmãos e os amigos, mas, como sabemos que vamos ter saudades deles de Quinta-Feira até ao meio-dia do Domingo, mais valia não os vermos. Experimentei momentos diferentes nas três vezes que fui. Das três vezes que fui, só na primeira tive a família comigo. Nas outras senti-me triste. Invejei os meus companheiros. Mas a vida é assim. E foi melhor assim. Mas o encontro tem um fim prático: roupa lavada e seca.
Ao sair do encontro, já com o rancho em andamento, entrou-me na sapatilha um cascalho insignificante, pensei que inofensivo. Para não me atrasar do rancho, não fiz caso. Continuei a andar. Mas a andar para o lado contrário, para evitar pisar o cascalho, tomei a opção errada. Deveria ter parado e tirado o cascalho logo. Paguei caro o erro. Muito caro. Como em tudo na vida. Há quem cometa erros e consiga outras oportunidades; eu cometi um e paguei logo com juros elevados.
Cheguei ao Paim, então um descampado, com uma enorme bolha no calcanhar do pé esquerdo. Ainda um irmão me meteu uma linha. Aguentei até à igreja dos Arrifes. Naquela noite fui dormir, mais outro irmão, a casa de um casal de idosos, que vivia numa casa sem luz eléctrica nem casa de banho. Jantámos dois ovos estrelados, amarelos que regalavam, com inhame, morcela e chouriço, e bebemos uma tigela enorme de chá louro com uma colher de açúcar. Que delícia! Levámos o candeeiro a petróleo e o bacio para o nosso quarto no primeiro andar. Aquele homem velho, um pequeno lavrador dos Arrifes, de mãos calejadas, que fora romeiro até poder, oferecera-nos tudo o que de melhor possuía. E o que ele nos deu foi o melhor que tive em muitos anos. Já deve ter morrido. Que Deus o tenho num bom lugarinho. Estou a ver a cara dele. Obrigado, irmão.
Sexto dia: dos Arrifes às Sete Cidades
(Sexta-Feira)
Foi com alívio que vi Ponta Delgada pelas costas. Lembrei-me daquela passagem bíblica em que a personagem sacode a areia das sandálias. Isto na primeira romaria. De novo a Natureza. De novo a singeleza das pessoas. Via-se que elas acreditavam naquela religião dos romeiros, diferente da de alguns padres. E senti-me bem. Não fora o calcanhar, ainda me sentiria melhor. Ali éramos todos iguais, todos irmãos, todos vestidos de igual. Éramos iguais por dentro e por fora.
No dia seguinte, quando o rancho chegasse às Bretanhas, se o tempo estivesse bom, avistar-se-ia a Ribeira Grande. Dali a nada estaríamos em casa. O mar na costa sul está quase sempre mais manso, mas quando está bravo não há braveza pior. Penso que terá estado mais manso nas três vezes que fui na romaria. Chovia de vez em quando. O calor do corpo chegava para secar o xaile.
Voltei a pensar nas minhas coisas. Tentava enganar a ferida no calcanhar, ocupando a mente. Nas escavações arqueológicas que começara. Num trabalho que estava a escrever. Mas de um modo diferente. Descontraído. Depressa encontrava as respostas às perguntas. O rancho rezava as suas orações e eu rezava pensando na minha vida profissional.
Fui nisto por muitos quilómetros, quando me aconteceu o melhor do dia na subida para as Sete Cidades. Por pior que o dia corresse, houve, quase sempre, algo bom para contar. Já o sentira no segundo dia, enquanto o rancho subira da Pedreira para Água Retorta, mas agora conseguira-o com mais intensidade. Deixei de me sentir. Pura e simplesmente. Agora, não me importo que acreditem ou não no que digo, mas a verdade é essa: fundi-me com a Natureza. Deixei de pensar. Quando voltei a pensar concluí que o melhor da oração é deixar de pensar. É estar e não ser. Não dava conta dos meus passos, das vozes dos meus irmãos, do vento, da chuvinha miúda, de nada. E depois disso voltei a senti-lo na ida e volta à Lagoa do Fogo na Páscoa do ano passado. A pior de sempre da minha vida.
Mas, do êxtase passa-se à dor num ai, e na descida para as Sete Cidades vieram as dores, a chuva passou de miudinha rapidamente a aguaceiro medonho e encharcou o xaile. Como estávamos adiantados para a hora da missa, esperámos que escampasse. Escampou e o irmão-mestre pediu-me que desse um testemunho ao rancho. Fiquei embaraçado. Nem sempre fui desembaraçado como sou agora. Desejei sinceramente que ele pedisse a outro irmão. Havia conseguido evitar que me mandasse rezar o terço. Seria uma vergonha. Não sei. Só sei o Pai-Nosso e a Ave-Maria. Como tentei evitar que fosse eu a fazer a oração à entrada da casa dos irmãos. Não sei nada disso. Sou uma desgraça nisso. Rezo, falando. Porém, não tenho nada contra quem reza de outra forma. Até fico rendido a ouvir as orações tradicionais.
Aliás, seguira, como todo o rancho, a iniciação de um miúdo. O irmão-mestre dera-lhe uma ermida antes dos Ginetes. Era o filho do Contramestre. Mas, todo o rancho sentiu orgulho. Alguns, como eu, pensaram nos seus filhos, o meu era da idade dele.
Voltando ao testemunho, como não houve maneira de o evitar, disse mais ou menos isto: obrigado por serem meus irmãos. Senti vergonha, não lhes disse o que experimentara na subida. Podiam considerar-me louco. Também não lhes disse que reparara de um modo diferente na flor dos incensos nos Fenais da Ajuda. Nem de que achara sublime sentir-me pai e mãe. Acho que só disse banalidades e pedi que me aceitassem no rancho.
Encharcados até aos ossos, esperámos sentados nos bancos da igreja das Sete Cidades. É horrível a sensação de se ter a roupa molhada no corpo. Para o evitarmos, afastávamos o xaile do corpo. Os romeiros, com a prática, descobrem pequenos truques, um deles é sentar-se ajoelhado para descansar um pouquinho. A gente ajoelha-se, mas ao mesmo tempo, encosta-se atrás. E sempre dá algum alívio.
Fomos arrumados em casa de uns irmãos que também iam nas romarias. Fui com o Irmão-mestre. Naquela casa, que ficava numa rua transversal à igreja, a meio da freguesia, com a qual nunca mais dei apesar de ter procurado, comi a melhor sopa de inhames de toda a minha vida. Nunca tinha comido sopa de inhames. Voltei de novo depois da romaria, e não encontrando a casa, fui ao restaurante, mas a sopa não me soube da mesma maneira. Tudo na romaria tem outro sabor. Tudo.
Agora vejam lá o que eu fiz sem querer a um pobre irmão. Como dormira mal na noite anterior, o irmão com quem dormira ressonava, pedi ao irmão que me coubera nas Sete Cidades que me deixasse adormecer primeiro. Juro que não sabia. Pobre irmão, quando de madrugada me levantei e o vi vestido e sentado à beira da cama, vi logo: o irmão ressona. Desculpa irmão. Foi o que disse.
Sétimo dia: das Sete Cidades ao Pico da Pedra
(Sábado)
Nas Sete Cidades, as madrugadas nesta altura do ano são bem geladas, os irmãos, enquanto esperavam uns pelos outros, batiam com os pés no chão, xaile pela cabeça, e protegiam-se do frio contra uma parede abrigada do vento. Conversávamos. Um dos temas girava à volta do futebol. Cada qual com o seu clube. Piadas. Ou sobre o caminho à nossa frente. Será que dá para passar pelo túnel? Temos irmãos em João Bom à nossa espera para o café. Todos são irmãos, mesmo os que não vão no rancho.
Cada grupo de irmãos toma o pequeno-almoço nas casas dos irmãos. Ninguém pede nada. É a regra. Nem ao jantar. Nem ao pequeno-almoço. E temos o dever de deixar tudo limpo e em ordem. Cama feita. Loiça arrumada. É a honra do rancho que está em jogo. Nem pensar em trazer nada do que não seja seu.
Pensou-se que daria para atravessar o túnel, o que, a ser o caso, encurtaria consideravelmente o caminho. A decisão era do irmão-mestre. Para lá seguimos. Isto na minha primeira romaria. Chegámos a João Bom molhados até aos ossos. A roupa, que havia sido mais ou menos seca à boca do forno na noite anterior, estava de novo molhada. E as sapatilhas também. Nas outras duas vezes, fomos por um caminho tortuoso de terra batida, cheio de covas, com o piso escorregadio, a meia encosta das Sete Cidades para quem vai para a Várzea. Na terceira vez, ainda pelo mesmo caminho, era tanto o nevoeiro que andámos por algum tempo perdidos.
Nestas alturas, os irmãos só pensam no caminho. Em ver onde põem os pés. E a gente conversa. Alguns fumam. Somos um grupo de gente, não de santos. O café de cevada, que detesto, em João Bom soube-me ao melhor dos cafés e a sanduíche de pão, manteiga e queijo, a um manjar de deuses do Olimpo.
Mais à frente, na tal curva da Bretanha, por entre pastos, numa ponta sobranceira ao mar, o rancho exultou de alegria ao avistar a Ribeira Grande. Estamos quase em casa. O almoço seria na Casa do Povo de Santo António Além-Capelas. Notei que andávamos distraídos. Eu também andava. Parece que já fizéramos tudo o que havia a fazer. Então, o irmão-mestre com voz grave admoestou o rancho: irmãos, a romaria ainda não acabou! O rancho caiu em si e pareceu ter voltado ao normal.
Não há qualquer bairrismo nisso, mas a luz da costa norte é diferente da da costa sul, assim como são diferentes os cheiros, e por isso também são os seus verdes. Olhei para alguns dos meus irmãos: estavam tisnados pelo sol. Cansados. O meu calcanhar, se antes apenas me incomodava, agora doía-me a sério, mal podia encostar a sapatilha ao calcanhar, sobretudo nas descidas, nas incontáveis descidas das Bretanhas. Transferindo parte do peso do corpo para o outro pé, iria, inevitavelmente, mais quilómetro menos quilómetro, piorar a situação. Fui fazendo um esforço sobre-humano para acompanhar o rancho. Comecei a atrasar-me ligeiramente. O mestre não se importou. Como eu, mais uns dois ou três. Com outras mazelas. Fomos andando ao nosso passo. Quando o rancho parava para descansar, nós continuávamos a andar no mesmo passo. Aí começou o meu martírio até entrar na Matriz de Nossa Senhora da Estrela.
Lembro-me de que a manhã estava bonita, linda, sem nuvens, um céu azul, viam-se ao longe as casas da Ribeira Grande. A tarde tornou-se quente. A recta dos Fenais da Luz foi um penoso calvário. Mas segui em frente. Um irmão a meu lado, que havia prometido desistir logo no segundo dia, voltava a prometer o mesmo. A minha oração, a partir de então, foi só a de chegar à Matriz custasse o que custasse.
Em Santo António, o rancho engrossou com crianças que se lhe juntaram ao rancho. São sobretudo filhos ou familiares dos romeiros que vão no rancho. Deu-se o caso, de alguns irmãos só terem, por motivos de saúde, forças para ir a partir dali, ou de uns dois que abandonaram o rancho antes terem pedido para regressar. Na minha segunda romaria, o meu filho Júlio foi ter comigo. Foi uma alegria inesquecível.
A missa no Pico da Pedra foi à hora marcada. Cheirava já a casa. Viam-se muitas caras conhecidas na igreja. Gente da Matriz. De novo o irmão-mestre teve de avisar que a romaria só acabava depois da missa do meio-dia na Matriz.
A distribuição dos irmãos pelas casas não é feita à toa, o irmão-mestre é quem decide. Tenta pôr crianças com crianças. Com moderação, chega a aceitar que amigos arrumem em suas casas amigos. E tenta juntar irmãos que se completem. Por exemplo, eu fui com um que sabia as orações.
Oitavo dia: do Pico da Pedra à Matriz
Na madrugada do dia nem me consegui pôr de pé sozinho. Apesar das pomadas para aliviar as dores musculares, do pó para secar a ferida no calcanhar, mal conseguia dar uma passada. Meu Deus, não vou conseguir!
Por momentos, confesso agora sem vergonha, pensei em desistir. Mas, pensei, se os outros conseguem, por que razão não hei-de conseguir.
À minha volta, alguns como eu. Outros, porém, apesar das mazelas, ninguém estava sem se queixar do que fosse, pareciam estar mais viçosos do que couves na horta.
Eu e uma mão-cheia de irmãos pedimos ao irmão-mestre para seguirmos à frente do rancho. E muito antes do rancho partir, saímos a manquejar. E eu pensava: a vida é também isso. E a romaria igualmente. E isto também será oração? A resposta que dei, não sei se teologicamente correcta, foi afirmativa. E fui manquejando. Ainda não chegara à ermida de São Sebastião, em Rabo de Peixe, e o rancho alcançara-me. O que falta ainda! Força, irmão Mário, tu consegues!, alguém do rancho disse. Nem eles imaginam a força que aquilo me deu.
E depois de duas paragens, uma na ermida lá no alto e outra na igreja do Bom Jesus, o rancho passando de novo por mim, parou a descansar em Santana. Havia em Santana, o antigo aerovacas, muitos carros com as famílias, e ainda mais crianças vestidas de romeiros para se juntar ao rancho. O meu primo Jaime, taxista, já falecido, olhou para mim, e disse: tu estás todo partido! Na brincadeira, perguntei-lhe: queres ganhar um frete?
Não sei o que não me doía, mas sei que a dor que se sente é a dor maior de todas que nos aflige e, quando esta deixa de doer, é a segunda dor maior que se começa a sentir. Naquele momento já não era o calcanhar esquerdo, eram também os músculos de ambas as pernas. Pedi de novo ao irmão-mestre para continuar à frente do rancho. Continuei enquanto o rancho descansava. E foi assim até à Banda d’Além em Santa Bárbara.
O irmão-mestre veio ter comigo e disse, irmão Mário, o rancho vai andar mais devagar, vens connosco a partir de agora. E fui. A partir daí, o ritmo do grupo abrandou, mais crianças entraram no rancho, que a este altura era já enorme, entrámos na rua Direita e dentro dela entrámos na igreja da Conceição, a igreja onde me baptizei, o povo de pé aplaudiu-nos como se fôssemos heróis. De volta à rua Direita, nos passeios as pessoas aplaudiam-nos, os sinos da nossa Matriz tocavam festivamente. Fizemos a oração. As famílias rodearam-nos. Vejo o meu filho, bebé de colo, ao colo da mãe. Quer vir para mim. Pego nele ao colo e abraço-o. Entrámos pela porta por onde oito dias antes havíamos saído. Mas não éramos os mesmos de há oito dias atrás. Éramos irmãos.
Aprendera outra lição para a vida: coragem é fazer o que se tem a fazer com ou sem medo com ou sem dor.
Termino esta narrativa, ironicamente, retirando o que li em Marco Polo, acerca da tolerância de Kublai Khan em relação às religiões que existiam nos territórios sob o seu domínio. Afinal de contas, comecei esta narrativa por aí. Respeito todas as pessoas de bem, crentes ou não. Respeito igualmente os que, sendo crentes não sejam cristãos e católicos. Sei que a minha Igreja cometeu atrocidades mas também operou maravilhas, sei que a Igreja é muitas vezes injusta, mas é a minha Igreja.
Ribeira Grande, 29 de Abril de 2011