Perguntar Não Ofende
Gritar a perda daquilo que nunca tivemos é pior do que a ausência absoluta: a segunda é tristeza, a primeira, arrependimento.
Tenho meia-hora, pois hoje acordei antes do costume, e vou tentar escrever sobre um susto antes dessa meia-hora antes.
Será que acordei mesmo?
Era eu um caramujo, e justo um caramujo justo: olha que plano: morava nos bolores de um corredor entre a Câmara e o Senado, corredor que os próprios parlamentares não conhecem - salvos os que dali parecem ter brotado - e costumava, eu caramujo de tudo, deixar a minha residência por uns meses e dar umas voltinhas por entre os gabinetes: havia bolor em cada cantinho, embora lhes fossem liberadas duas verbas anuais para reformas, coisas nas medidas de alguns milhões de dinheiro bom de compra. Era ali, no bolor, no cantinho cheio de fungos que eu me camuflava.
Eis que o que mais ouvi foi sobre uns jantares – que fome daquela gente! – e também de muito mais dinheiro se dizia sempre. Teve um que perguntou certa vez, “escola pra que, se ninguém sabe ler?”, e colocava maços de dinheiro verde nos bolsos.
Imagine você, que só quer saber do fim da minha história, ser caramujo analfabeto com um deputado desses lá dentro? Pena que eu também não sei contar, nem mesmo dinheiro!
Teve mais? Teve! Pense só que caramujo ouve bem e vê melhor ainda, é a verdade, e fiquei impressionado com a beleza de duas repórteres que viviam ajoelhadas no gabinete da presidência do Senado... Lindas... Mesmo que caramujo não sinta essas coisas: lindas! Três ou quatro presidentes passaram por ali em pouco tempo. O que quer dizer? Ou o Senado estava a pé – coisa que duvido um tanto –, ou aquele cargo valia as duas, juntas, juntinhas. Cargo disputado a tapa, precisavam ver vocês quando as portas se fechavam!
E o amor? De repente uma complicação para o caramujo – ora ele, outra, ela: o caramujo é macho e fêmea, sozinho, no decorrer da vida... Sem preocupações – e era preocupação das boas: havia uns que passavam o dia ao telefone, no papo, sempre, uma família em cada estado: amantes para todos os sotaques. Como amam esses senhores!
Engraçado: recebiam a champanhe em francês, entornavam-na em português, e comemoravam que apenas uma pessoa cumpria a pena por todos: uma tal de Georgina. E diziam, felizes, “mulher não é boa pros negócios”.
Como são homens esses senhores!
Por algum motivo, passou a fazer sentido a concepção de ironia. Caramujo que sai da concha pra respirar pode perder o nariz, diz uma frase da minha gente, sem nem mesmo fazer sentido, pois que a gente não tem nariz. Salva inocência, o mundo à parte: tinha um que celebrava morte a morte as suas conquistas: terra de índios, terra de sem-terra, terra de ribeirinho... Esse ficou muito tempo, mandato sobre mandato. Dele eu tive medo: mesmo sendo um óbvio caramujo sem nariz, eu jamais retornei por lá.
Aí o desgraçado de um alarme no comércio vizinho à minha janela resolveu disparar. Despertei meia hora antes. E acordei meio rastejando...
Perguntar não ofende: aos olhos da gente, o que eu tive foi um sonho ou um pesadelo?