Crônicas de Uma Vida Não Anunciada - O Segredo da Luz
Sempre sonhei voar. Não o vôo da ambição de se estar acima de outro, mas uns vôos de paz, aonde, ao seu lado, vão seguindo outras almas de mesmas intenções. Naquele canto do casebre, aprendi. Volitava quase toda noite, não era um vôo pleno, mas dava pra sentir a paz que muito faz falta nos dias de hoje. Muitas vezes, saltitava; procurava me assegurar que pousaria em lugar seguro... Vez em quando, era acordado por um gemido de fome no meio da noite. Não foram dias fáceis, mas foram dias de paz. A miséria ensinando almas ansiosas... E ociosas.
Em outro canto, uma pequena rede; dentro, um corpinho frágil arfava em estranhos ruídos, acompanhada, na noite, de pedaços de panos ensopados de urina e fezes – os pais, dormindo sobre o domínio da bebida, não ligavam. Sirizinho era quem sempre a ajudava. Eu procurava ajudar sem interferir muito, afinal - daqui uns dias - não estaria mais ali; eles teriam que continuar suas vidas sem a minha presença.
Às vezes, ela tinha noite de paz. Também volitava, tinha certeza. Toda criança nasce com o segredo da luz, apenas não sabe ao mundo explicar. Com o tempo, já com quase dois anos de idade, suas pequenas pernas frágeis começaram a tentar segurar o corpinho sobre os pés – junto a sua ansiedade em correr mundo, vinha os gritos de loucura da mãe: “... Oia Siri, essa desgraça não quer caminhar...” O maldito termo italiano - “disgraziato” - passou a consumir minha inquietação. Passei a combatê-lo quando o ouvia perto de mim.
- Não, ela não pediu para nascer como uma graça negativa; um dia, ela seria apenas “Gratia” agradável, virtuosa – Pensava, enquanto observava suas tentativas de levantar vôo.
Procurava pouco me ausentar; receava o comportamento da mãe – nos seus momentos de loucura, descarregava na pequena criança. Sirizinho era seu protetor. Vez em quando saia correndo com ela nos braços; o choro, aos poucos – durante a correria -, transformava em um riso miúdo de criança satisfeita. Como entender a bipolaridade humana de um mundo infantil: conseguir, em simples atos, transformar a dor em alegria.
- Ela queria apenas voar; trazer dos sonhos a paz que ela só encontrava dormindo... – Talvez, quem durma em colchões de espuma, no sombrio reduto dos portos seguros da vida, não possa entender minha teoria alucinante de querer tentar decifrar os enigmas de uma vida não anunciada, vida de dor, de desconforto, de incerteza... Procuro relembrar, constantemente, o mesmo chão batido daquela criança para não esquecer que, como numa teoria “Spenciana”, na vida vamos nos adaptando.
- Vamos, menina, é a sua vez... Ela já havia domado o chão – aqui e acolá, se esparramava na areia do caminho e soltava uma gargalhada de alegria.
As pequenas pernas iam se trançando numa carreira desenfreada. Entre os dedos, ao sabor do vento, uma hélice de um pequeno pedaço de palha seca de palmeira, enfiada em um espinho de tucum, parecia querer levantar vôo com a pequena Luana.
Enquanto observava seu sorriso, agora tinha certeza: ela já voava mais do que eu!