AS SEMANAS SANTAS DE ANTIGAMENTE

Nesta tarde de chuva mansa e silenciosa, da Quinta Feira Santa deste dia 21 de abril, ano de 2011 – por sinal, data em que se homenageia o Proto-mártir da nossa Independência, Tiradentes – dia que corre, quase diria que voa, tão depressa eles se sucedem. Ainda ontem estávamos em janeiro, abrindo o Ano Novo, e já estamos entrando em maio. Quase na sua metade. Hoje, portanto, é o dia que precede ao da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, há dois mil e onze anos. Dia propício à meditação, me faz recordar como eram diferentes as Semanas Santas do meu tempo de criança, de adolescente, até mais ou menos a década de 70 do século que terminou há onze anos.

Havia em toda a cidade, em todas as casas, em quase todas as pessoas, um sentimento de respeito, de compunção, de tristeza pelas celebrações da Semana Santa, durante a qual se rememora o sofrimento de Jesus, o Messias enviado por Deus para trazer-nos a Boa Nova. Escolheu seus doze discípulos entre as pessoas mais simples e com eles percorreu as terras da Palestina pregando o Evangelho: a paz, a humildade, a caridade, o amor a Deus e, através dele, ao próximo. Curava os cegos, os aleijados, leprosos, libertava as pessoas endemoniadas e ressuscitava mortos, até o dia em que, como já dissera aos discípulos, após três anos de peregrinação e pregação, seria preso, torturado, crucificado, morto e gloriosamente ressuscitado no terceiro dia.

Nesses dias de celebração, principalmente da segunda à sexta-feira, não se bebia bebida alcoólica, não se faziam festas, as estações de rádio só tocavam músicas clássicas. Nas quartas e quintas feiras as pessoas pobres saiam pelas ruas, de casa em casa, pedindo uma “esmolinha para jejuar”. Naquele tempo, as famílias mais abastadas compravam bacalhau, que era importado em toneis de madeira e, não sei dizer porque, seu preço era mais barato, como era também os de outros produtos importados, como a manteiga e o azeite de oliva. Então, os que podiam davam pedaços de bacalhau e os menos endinheirados davam farinha, bolachas, pães ou outros alimentos apropriados. Havia, também, o costume de não varrerem as casas e muita gente, na sexta-feira, não tomava banho. Os meninos eram privados de certas brincadeiras, que não eram pecaminosas mas dizia-se que desrespeitavam o sentimento de reverência àqueles dias santos. Estes tinham que acompanhar os pais às cerimônias religiosas, com muito recato, o que não se vê mais.

Havia as comoventes procissões do Encontro – para a qual era sempre escolhido um bom orador sacro, que comovesse as multidões - e a do Senhor Morto, conduzindo sua imagem sob o pálio, com grande acompanhamento, os homens, em sua maioria, de paletó e gravata e as mulheres com as cabeças cobertas com véu preto. Na quinta e na sexta-feira os sinos não badalavam e na noite da quinta, devotos saiam pelas ruas, agitando as matracas, com seu som cavo, convocando as pessoas a reverenciar a imagem do Senhor Morto. Não esqueço o som desse matraquear pungente nas noites altas e silenciosas e nas madrugadas frias, pois esse som me enchia de tristeza a alma ainda pura.

Como todos sabem, foi Judas Iscariotes o discípulo que traiu Jesus, entregando-o à prisão, o que resultou em sua condenação ao martírio e dolorosa morte na cruz, ato de que se arrependeu e o levou a enforcar-se. Por isso, nas noites de Sexta-Feira Santa, costumava-se arrumar, numa roupa velha doada por alguém, enchendo-a de palha, uma figura ridícula de Judas, algumas até com gravata e sapatos, que era amarrada numa haste de madeira e malhada pelas pessoas, especialmente pela garotada que se divertia, e, depois de muito açoitar, tocavam-lhe fogo sob os apupos da multidão.

Na rua em que eu morava havia, quase em frente, um casarão de quatro janelas, um sótão e dois enormes quintais, hoje demolido, no qual morava uma família que promovia freqüentes festas. A malhação de Judas era uma delas. Como a família era numerosa, e seu chefe era um poeta galhofeiro, a casa se enchia de gente e a pândega se prolongava pela madrugada do Sábado de Aleluia, terminando por botarem fogo no boneco Judas.

Segundo Luiz da Câmara Cascudo, esse costume teve origem na Península Ibérica, radicando-se na América Latina desde os primeiros séculos da colonização, do Rio de Janeiro logo se espalhando por todos os Estados e suas cidades, com curiosas variedades.

Rememoro aqui com saudade aqueles tempos de devoção e de paz, quando raro era um ato de violência, não havia drogas, o respeito aos pais e aos mestres era quase uma coisa sagrada. Com a experiência de um octogenário sei diferenciar o que de bom existia naqueles tempos e o que de bom existe hoje; e o que de muito ruim havia no passado, e o que de péssimo acontece nos tempos atuais. Talvez sobre essas importantes diferenças volte a falar algum dia.

De qualquer modo, sinto muita saudade daqueles tempos “da aurora da minha vida” como dizia o poeta Casimiro de Abreu. De tudo o que era bom, na minha concepção, a infância, a adolescência e a mocidade de minha geração desfrutaram e guardo em meu coração todos os acontecimentos, os felizes e mesmo alguns tristes, que sensibilizaram a minha alma. As Semanas Santas, das quais participei, estão gravadas em minha lembrança. Os tempos mudaram muito, ou demais até, os costumes se modificaram totalmente. Mas a verdade é que, nas celebrações da Semana Santa dos últimos anos não se sente mais – pode ser apenas impressão minha – aquela religiosidade e respeito que se observava no passado.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 25/04/2011
Reeditado em 26/04/2011
Código do texto: T2930167