Nós, surrealistas

Quando o filme "Quem Quer ser um Milionário?" estreiou nos Estados Unidos muitos críticos de cinema repetiam a mesma ladainha quando tentavam decifrar a orientação da produção: esse é um filme surreal.

Na hora me lembrei da visita que o pai do surrealismo, André Breton, fez ao México em 1938. Breton dizia que a cultura mexicana era surrealista.

Calma, calma. Primeiro vamos definir o que entendemos por surrealismo. Normalmente, costumamos usar "surrealismo" para falarmos de algo que parece totalmente absurdo. Quando André Breton e outros intelectuais franceses lançaram o Manifesto Surrealista em 1924 eles propõe uma arte que vá além da realidade. Como assim? Eles pregavam uma arte fora do racionalismo, uma arte voltada para o nosso incosciente (Freud era uma grande influência para muitos deles e, além disso, a Primeira Guerra Mundial foi traumatizante para boa parte da Europa que passou a desacreditar no racionalismo).

Por isso, um dos exercícios mais prestigiado entre os artistas intelectuais era a escrita automática, onde se escrevia a primeira coisa que vinha na cabeça (o que o inconsciente mandava para nós). Exercício, aliás, do qual Breton, que era poeta, fazia incessantemente.

Pois, em 1938, Breton e Antoin Artaud visitaram o México. Na visão de Breton, a cultura mexicana era extremamente surrealista, porque existia uma visão mágica da vida e um certo culto á morte.

O que a conclusão de Breton e a afirmativa dos críticos de cinema norte-americanos tem em comum é algo que chamamos de etnocentrismo. Sim, Breton chama a cultura mexicana de surrealista, pois está comparando-a com a sua própria cultura. O México seria um país preso no inconsciente só por ter uma cultura diferente? Na França, a realidade era outra. Talvez para os críticos de cinema seja algo absurdo ver crianças se banhando em rios sujos e andando descalças por ruas movimentadas e poluídas, mas para os indianos e mesmo para nós isso é mais do que natural.

Falta, em ambas as afirmações, uma maior compreensão da realidade de outros povos. Para um grupo de intelectuais que se dizia cosmopolita é um tanto estranho esse desconhecimento, assim como para os críticos de cinema, que se espera que assistam a filmes de diversos países, se espera que tenham pelo menos um grão de entendimento sobre a realidade de outros povos.