A necessidade de se reparar uma grande injustiça no futebol brasileiro
Há 116 anos, no dia 14 de abril de 1885 Charles Miller organizou, o que se convencionou chamar de “a primeira partida de futebol no Brasil”. Mas existem diversos detalhes e registros históricos que precisam ser pesquisados, para que uma grande injustiça seja reparada. Vamos aos fatos.
Não existe registro documental de que a partida de futebol realizada na Várzea do Carmo, em São Paulo, entre funcionários da Companhia de Gás e da Estrada de Ferro São Paulo Railway, foi efetivada dentro das regras em prática na Inglaterra e trazidas ao Brasil por Charles Miller.
As palavras do próprio Miller, 57 anos depois, em uma entrevista à revista O Cruzeiro demonstra o quanto de improvisatório houve no evento que ele promoveu, naquele distante quatorze de abril.
“Numa tarde fria de outono em 1895, reuni os amigos e convidei-os a disputarem uma partida de football. Aquele nome, por si só, era novidade, já que naquela época somente conheciam o críquete.
- Como é esse jogo? - perguntam uns.
- Com que bola vamos jogar? - indagavam outros.
- Eu tenho a bola. O que é preciso é enchê-la.
- Encher com o quê - perguntavam.
- Com ar.
- Então vá buscar que eu encho.”
Mas, mesmo que naquele “match” as regras inglesas tenham imperado e as equipes tenham se apresentado completas, com seus “elevens”, em nada fica diminuído o fato histórico que teve como palco a cidade do Rio de Janeiro, mas precisamente o bairro de Bangu.
Um ano antes do paulista, em abril de 1894, o escocês Thomas Donohoe, técnico industrial da Fábrica de Tecidos Bangu, logo após ter retornado de uma viagem à Inglaterra, de onde trouxera uma bola de futebol, bomba de ar, bico para enchimento e alguns pares de chuteira, convocou seus colegas de trabalho, principalmente os que haviam jogado com ele no Southampton Football Club para uma partida de futebol.
O “match” foi jogado em um campo improvisado (não há registros das dimensões) ao lado do terreno ocupado pela fábrica e cada equipe contou apenas com 5 jogadores. O escocês estava tão exultante em poder voltar a jogar futebol e mostrar aos nacionais como era fascinante praticar aquele esporte, que não se preocupou com detalhes como uniformes, duração da partida, registro dos nomes dos participantes e dos gols assinalados. Mas a semente estava plantada e fecundaria.
Muito pouco tempo depois, graças ao interesse despertado, já estavam sendo disputados jogos obedecendo à regra criada pelos ingleses e uma discreta platéia já freqüentava o “field” para assistir o novo e excitante esporte.
Além da mais manifesta, a paixão pelo futebol, existiram outras coincidências nas vidas de Thomas Donohoe e Charles Miller. O primeiro era escocês e o segundo filho de um escocês. Thomas trabalhou em Southampton, na Platt Brothers and Co. e Charles saiu do Brasil para estudar nesta cidade, na Bannister Court School. Provavelmente cruzaram os bigodes em uma ou outra partida de futebol lá pelo sul da Inglaterra.
Charles Miller, em abril de 1895, organizou um partida de futebol no centro da rica cidade de São Paulo. É provável que tenha se preocupado com o cumprimento da regra inglesa, com registros e outros detalhes. Thomas Donohoe, em abril de 1894 (um ano antes de Miller), também organizou uma partida de futebol, só que no distante e pobre bairro de Bangu, no Rio de Janeiro, e não se preocupou muito com os detalhes.
É irrefragável que os aspectos conjunturais que envolveram o evento promovido por Charles Miller influenciaram decididamente na formação do fato histórico. Não obstante, existe o fator cronológico, que favorece Donohoe, além de outro fato histórico, este sim reconhecido, de grande importância, tanto sociológica quanto antropológica, na inserção, do operariado carioca, ainda que tímidamente, em atividades sociais na cidade: Aquele jogo de bola promovido por Thomas Donohoe, no longínquo abril de 1894, foi o embrião do primeiro clube de futebol proletário do país, o Bangu Atlético Clube, fundado 10 anos depois, em 17 de abril de 1904.
Em tempos mais modernos o alvirrubro da Zona Oeste carioca sofria uma injustiça, de mesmo caráter da que vem sofrendo o escocês Donohoe. O Clube de Regatas Vasco da Gama, lídimo e tradicional representante da colônia portuguesa no Rio de Janeiro, se arvorava em auto proclamar-se pioneiro na inclusão de atletas negros no futebol carioca, logo esse clube, que sempre foi administrado por portugueses ou seus descendentes, tendo-os como grande expressão na mais seleta camada do seu quadro de sócios, os mesmos portugueses que em seus estabelecimentos comerciais exploravam os negros, impondo-lhes um regime de trabalho tanto mal remunerado quanto estafante e negando-lhes quaisquer oportunidades de ascensão social; estranho paradóxo esse.
Pois esses senhores e seus descendentes diretos achavam-se no direito de requerer para o seu clube, algo que não lhes cabia, senão vejamos: o Clube de Regatas Vasco da Gama, fundado somente em 1923, pretendia a honra de ser o primeiro clube de futebol do Rio de Janeiro a escalar jogadores negros, quando o Bangu (fundado em 17 de abril de 1904) já no dia 14 de maio de 1905, colocava em campo, para uma partida amistosa contra o Fluminense Futebol Clube, o negro Francisco Carregal e no ano seguinte, no campeonato carioca, o clube proletário escalava mais um negro em sua equipe, o goleiro Manoel Maia. A forma carinhosa como o clube é conhecido – Mulatinhos Rosados – não deixa dúvidas sobre esse pioneirismo.
A mesma cronologia que favorece Thomas Donohoe, favoreceu o clube que fundou, porém nesse caso já existia uma farta documentação que podia desmentir as alegações vascaínas. Assim, em 20 de novembro de 2001, após uma minuciosa pesquisa feita pelo deputado Noel de Carvalho, onde foram reunidos documentos inquestionáveis, a Assembléia Legistativa do Estado do Rio de Janeiro, concedeu a Medalha Tiradentes ao Bangu Atlético Clube “pelo destemor e pioneirismo na luta contra os preconceitos discriminatórios ao atleta negro”. Assim foi restabelecida uma verdade histórica.
Das mesma forma que a ALERJ reparou uma incorreção que maculava a própria história do Rio de Janeiro o Congresso Nacional poderia, e não é muito custoso fazê-lo, reparar o erro histórico sobre quem é verdadeiro “pai” do futebol brasileiro.
Luiz Vila Flor
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Fonte: Livro NÓS É QUE SOMOS BANGUENSES, do pesquisador da história do Bangu Atlético Clube, Carlos Molinari (http://www.bangu.net/informacao/livros/nosequesomosbanguenses/apresentacao.php).
Leia também o Livro ALMANAQUE do BANGU, do mesmo autor (http://www.bangu.net/informacao/livros/almanaquedobangu/apresentacao.php).
A fonte mais completa para se conhecer a história do Bangu Atlético Clube e ficar informado sobre as atualidades do clube é o site BANGU.NET, de Paulo Roberto e Carlos Molinari (http://www.bangu.net)
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