Dona Celina em Copa do Mundo

São Sebastião da Boa Vista, Pará, Marajó, 27 de junho de 2006.

Dona Celina andava nervosa naquela manhã de terça-feira, meia-hora que antecedia ao jogo da Seleção Brasileira de futebol, por volta das oitavas de final da copa do mundo, a da Alemanha. Nos seus setenta e um anos bem vividos, ainda permanecia serelepe ou sajica (como dizem os caboclos do Marajó) aos trabalhos rotineiros de sua morada lá na ilha do Caeté, em São Sebastião da Boa Vista. Cedo se levantou para cortar um pouco de lenha, mesmo que fossem na verdade gravetos obtidos abanou o fogo pacientemente para o arroz logo ficar pronto. Pegou água no balde para lavar a louça do jirau amanhecida do dia anterior. Jogou dois punhados de milho aos patos bobos que passeavam pelo terreiro. Despejou o resto de comida humana da janta aos porcos enxeridos que brincavam por debaixo da casa enlameada.

A velha senhora penteou por volta das nove horas o cabelo duro da neta preferida, pinçando aqui e ali uma lêndea que encontrava na pequena. Pediu que outra neta a ajudasse a passar um pano molhado preso na vassoura no assoalho para dar um ar de limpeza naquele piso de tamaquaré e assim esperou os entes chegarem.

Nas onze horas, os primeiros filhos aportaram no trapiche de Dona Celina, juntamente com o restante da netarada. Prontamente a casa virou um barracão de gente conversadeira, barulhenta mesmo, a tremer o chão com a correria da molecada. A anciã cortara os saquinhos de bolacha de água e sal e os juntara no prato de maneira organizada, pretensiosamente em espiral, acompanhados da garrafa de café meio amargo (no gosto dela) para o centro da sala. Combinara que só iriam almoçar após o jogo e assim aquela merenda teria a função de enganar a barriga.

O jogo começa e Dona Celina se deposita no cantinho da plateia, na sua cadeira separada do sofá, imediatamente ocupado pelos homenzarrões presentes. Não criava caso. De início, surpreendida pelo gol da seleção, o qual identificava pelo grito alegre dos parentes, marcado por um tal de Ronaldo, soltou um riso tímido no canto da boca, como se a homenageassem, e vendo a felicidade dos meninos, fez-se feliz também.

Daí por diante foi apenas sofrimento. A voz potentosa do locutor metia-lhe medo a cada ataque do time adversário. Parecia que iriam invadir o seu país e destruí-lo, ou pensava que o chupa-chupa retornara. Lembrava do tempo de menina, quando ficava com arrepios perante as estórias de matinta-pereira. O Mal de Parkinson impulsionava o não constante da cabeça, como a estar decepcionada tecnicamente com a comissão técnica da seleção que nada fazia para mudar a situação. O locutor preparava o risco e “Dida!!” defendia a equipe. Era um medo sem explicação, apenas sentido ao ouvir vozes preocupadas e observado nos olhos das suas crianças e filhos. Até eles estavam amedrontados.

E o Brasil fez o segundo gol. Dona Celina voltou a soltar um riso contido de alívio, tudo ali, quietinha, no canto da sala. Levantou menos tensa e foi o banheiro eliminar a tensão na casinha que ficava ao final da estiva do terreiro.

Segundo tempo. Mais sofrimento. Não importava o placar, a senhora continuava a sentir calafrios de uma possível força de destruição do inimigo anunciada pela televisão, não entendendo patavinas, mas pressentindo que algo iria mal. Terceiro e último gol. Festa dos parentes. A idosa mulher até projetou uma proposta de bater de palmas e a partir de então reparou pela alegria dos pequenos que tudo estava definitivamente tranquilo. Saiu sem ser vista, aliás, não a perceberam durante todo o espetáculo, e foi terminar de esquentar a comida, aliviada, feliz, sem saber o motivo direito, mas tendo a impressão de que a vida estaria nos eixos e o Brasil equilibrado para todos. Para Dona Celina, o Brasil era o bom e Ele nem tinha conhecimento que ela existia.

Agora, imaginem seus sentimentos no jogo posterior, perante um tal de Zidane? Imaginem...