Um daqueles anjos tortos

Curralinho, 06 de setembro de 2006.

Naqueles dias de 1999 ganhei uma muda de ipê. Um anjinho torto de nascença, cujo defeito, confesso, só verifiquei no momento de plantar. “E vou plantá-lo assim mesmo!”, pensei. Duvidaram lá em casa que eu conseguiria fazer a arvorezinha aguentar a ventania, a chuvarada e a cachorrada do quintal. Então desafiado, passei aos serviços de poda, equilibrando os galhos até a física concordar em manter o ipezinho na posição vertical.

Quatro anos depois, a dita muda já era uma arvoreta, vá lá, meio torta ainda bem verdade, mas reconhecidamente um projeto de ostentação no meu terreno. E quando o tempo avançou, sem a percepção nítida de qual ponto temporal específico iniciara o fenômeno, pardais, marias-bestas e bem-te-vis começaram chegar-se ao ipê, o que aos poucos foi se transformando num verdadeiro condomínio, de um vai-e-vem frenético de asas, tornando-me um biólogo de final de semana, estupidamente amador e ao acaso do comportamento ornitológico de tais seres.

Às seis horas da matina inflamavam o meu despertar por uma cantoria caótica de quem estava a cobrar do mundo mais um dia de trabalho, repetindo-se o processo no fim de cada tarde, com outra gritaria, dessa vez a trazer as novidades ocorridas em mais uma lida diurna. Deviam os pássaros conversar sobre frutos de açaí, sobre gatos, sobre pedras atiradas pela molecada malvada ou cagadas nas cabeças dos humanos infelizes; enfim, assuntos normais da sociedade “passarinhesca”.

Enquanto a maria-besta-macho dialogava com a parceira como fora duro o seu dia, um peste debochava lá do último ramo da árvore:

- Bem-te-vi!

Um dia, minha esposa ouviu o comentário de uma vizinha que falava do incômodo que era para ela o susto na manhãzinha por conta da algazarra feita, sugerindo a derrubada do ipê para por fim ao barulho. Essa proposta foi rebatida pelos outros vizinhos, os quais achavam bonitos e providenciais os gritos de alerta da passarinhada, reforçando o fica do ipê naquela rua de valas, asfalto e fiações elétricas e telefônicas. Então ainda fico a acreditar nos homens. Pelo menos na grande maioria deles.

Num desses em que não acredito tanto assim, meu cunhado resolve fazer a peripécia de realizar uma “podazinha” no ipê para evitar que os galhos chegassem a causar algum transtorno na rede de energia elétrica, com a qual concordei prontamente. Contudo, antes de sair para uma das minhas rotineiras viagens, recomendei que se cortasse apenas o necessário. “Não vai pelar...”, foi a sentença. Pronto! Foi o mesmo que dizer “vai lá e detona a árvore!” Quando retornei vi um quase escapelamento e pássaros pousados um ao lado do outro no fio elétrico olhando para a árvore decepada como a dizer: “cadê nossa casa? Que fizemos?”. Foi meio engraçada a cena e confesso que senti dó dos passarinhos. Um deles, vendo-se forçado a ingressar no movimento dos sem-teto, resmungou:

- Tris-te-vida!

Aos poucos o silêncio foi tomando conta da matina. O vesperal ficou sem graça. E mesmo a vizinha antes incomodada percebeu a tristeza que ficara na rua. Foi um ano inteiro assim. Fico imaginando lugares antes habitados pela bicharada que se fizeram sepulcros a céu aberto sem mais o tagarelar da natureza.

Hoje, em 2006, eis que a folhagem e a galhada crescidas na suficiência de abrigar pássaros fizeram alguns voltarem, o pardal, a maria-besta e o bem-te-vi num contingente ainda a recuperar o que fora outrora, porém, com a força conjunta o bastante para me acordar naquelas seis horas da manhã. Um casal de ciganas passou a visitar a árvore. Vem de um canto que não sei e vão para um lugar desconhecido. O ipê deve funcionar como um tipo de pousada (literalmente) daquelas de meio de estrada durante a jornada que fazem. A alegria voltando aos poucos retirou da boca de um vizinho a sensação de que era abençoada a árvore. A rua gracejava.

E para dizer que não falei das flores... bom, isso é um espetáculo à parte, entre os meses de julho e setembro, momento em que a jovem ipê desnuda-se, perde as folhas e para não mostrar sua vergonha, recobre-se de um vestido fino de flores amarelas para seduzir não sei quem, mas que trata-se de um felizardo sem dúvida a morar na minha ruazinha e pelos cantos espalhados pela Amazônia afora. Um pássaro, risonho, comenta minha admiração:

- Bem-que-eu-vi!