O CASO DO VIOLÃO ELÉTRICO
Nos seus trinta e quatro anos bem vividos à sua maneira, não que fosse apenas para fazer rimas mas, violão era a única paixão que Otávio amava de coração. Não havia mulher que despertasse maior interesse, por mais bonita e atraente que fosse, mesmo quando os colegas lhe dirigiam alguns gracejos sobre as garotas residentes naquelas paragens. Ele simplesmente dissimulava como se a conversa não fosse com ele.
Na década de setenta, era hábito nas propriedades circunvizinhas os rapazes se apresentarem aos domingos e feriados montados em robustos animais de sela. Eram cavalos quase puro sangue, muitos deles marchadores de primeira linha. Às vezes apareciam algumas mulas de porte altaneiro, de darem inveja até mesmo em quem não fosse apreciador, mas Otávio não se deixava atingir, olhava de lado e saía sem o menor espanto. Gostava mesmo era de violão.
Os seus devaneios mais íntimos eram com a música. O toque dos dedos nas cordas do velho violão lhe dava o maior prazer, algo indescritível, assim como quem ficasse à toa a conversar com anjos. Nesse deleite passava todas as suas horas de folga. Não raras vezes, cantarolava modas de viola dedilhando o envelhecido e amado violão. Sonhava compor suas próprias toadas caipiras, já possuía algumas letras que, para ele eram verdadeiras obras primas rabiscadas num caderno do tempo de escola. A cadência e o compasso estavam gravados exclusivamente na própria cabeça.
Viviam no pequeno arraial de Pires Belo, no Sudeste goiano, hoje já alçado à condição de Distrito de Catalão. Ele, sua mãe Verica e William, o irmão caçula. O pai, há muito já havia partido para o outro mundo. Eram pessoas muito humildes apesar de labutarem dia e noite tentando o progresso. Residiam numa casinha feita de adobe, madeiramento roliço e telha de barro comum, o que para a época já chegava a ser uma certa pompa. Mas, o especial da casa era mesmo o fogão a lenha, usado com maestria por sua mãe, dona Verica. Ela era a simplicidade em pessoa, cuidava da casa e quintal. O pomar, mesmo pequeno era de se contemplar, além das inúmeras plantas medicinais já famosas nas vizinhanças. Dizia ela que tinha planta para a cura de qualquer incômodo, por mais complexo que fosse.
A vida não era nada fácil. Trabalhavam no campo, não possuíam terras, plantavam em terrenos particulares no sistema de meação. Na época em que as roças precisavam de maior atenção, vinham os vizinhos e ajudavam a limpar ou colher, no sistema “troca de dia”. Assim, quando as plantações dos vizinhos necessitavam, lá iam pagar o dia que já haviam recebido em trabalho anteriormente.
William, o irmão caçula, não queria nada com nada. Trabalhava em dias alternados, às vezes ficava semana inteira sem pegar no cabo das ferramentas. Sempre dispunha de desculpas afiadas na ponta da língua para justificar as faltas ao serviço. Em sua defesa, dizia a mãe que era coisa da idade, que com o passar do tempo era de ficar tal qual Otávio, responsável, trabalhador e determinado.
Otávio de nada se queixava. Sempre calado, cumpria sua obrigação e até a do irmão. Apenas não lhe dava trela. Procurava ano após ano produzir em maior quantidade. As terras já esgotadas não ajudavam, plantava maiores áreas e colhia porções menores. Não desanimava, acreditava que no próximo ano as coisas iam melhorar, haveriam de melhorar. Então saiu a procurar nas cercanias novas áreas para plantio, convenceu um pequeno fazendeiro que nas margens de um córrego da fazenda era próprio para o cultivo de feijão. Tanto falou das conveniências da terra e da possibilidade de colheita farta que o dono se convenceu. Deixou que desmatasse a área, queimasse a ramagem e preparasse para a plantação, novamente no sistema de meação.
Depois de roçado o terreno, Otávio levou o irmão William e um vizinho para ajudar a destocar a área e deixar em condições de receber as sementes. Serviço pesado, fatigante ao extremo. Principalmente num dia igual aquele, mês de setembro de 1971. O sol era abrasador, o terreno íngreme ajudava a cansar mais depressa as pernas e a querer sempre mais amiúde buscar o córrego e beber água fresca na sombra dos arvoredos. No segundo dia de destoca, Otávio disse aos companheiros que tinha ouvido falar sobre a existência de violão elétrico na Capital do Estado de Goiás. Dizia que o som era maravilhoso, quase divino. Que era bem alto e definido, que se tocado com maestria, assemelhava-se a uma sinfonia.
Depois de falar bastante sobre a novidade musical, disse que naquela área plantaria feijão roxo. Aquele graúdo, resistente a muitas pragas e que uma vez cozido, dava massa fina e uma bela cor e no mercado preço bom. Deus haveria de ajudá-lo mandando bons tempos e chuvas fartas, a parte que caberia a ele, que era dos cuidados e zelo com plantação cumpriria a contento. Assim, haveria de ter uma colheita compensadora, tiraria a parte do dono da roça, a do gasto com a casa e a sobra venderia na cidade, no armazém do velho libanês Nicolau. Com o produto da venda compraria um novo violão, o mais lindo que encontrasse no comércio desde que fosse elétrico, igual aos da Capital.
O companheiro de troca de dia e o irmão William ouviram a tudo atentos e calados. William que conhecia o zelo que Otávio tinha com o velho e cansado violão, ficou matutando como seria o tratamento com o tal violão elétrico. Mesmo ético em demasia, seria capaz de surrar a própria mãe caso esta cometesse alguma avaria com o objeto de estimação do filho. William, que de santo não tinha nada, ouviu, ouviu e depois falou em alto e bom som, que quando Otávio comprasse o violão elétrico ele ira dedilhar a jóia rara, logicamente quando ele não estivesse em casa. Otávio já esbravejando disse que jamais o irmão iria tocar no violão, por mais que este implorasse ou até mesmo se humilhasse. William repetiu que às escondidas tocaria o violão. Otávio repetiu que não. E neste toca não toca as palavras foram ficando ásperas, ríspidas por demais. Otávio há muito queria falar umas verdades ao irmão e aproveitou a oportunidade. Tudo que agüentara calado por vários anos foi saindo da boca de Otávio. Impropérios absurdos, outros verdadeiros e até merecidos por William.
O sangue jovem de William fervilhou nas veias, respondeu asperamente as ofensas, xingou e esbravejou em altos brados. Não demorou muito e surgiram entre os irmãos os primeiros empurrões, em seguidas bofetões, chutes e logo se agarraram sobre a terra preta da queimada da véspera. Rolaram, caíram em grotas, esfolaram braços e pernas. O companheiro de trabalho tentava em vão de todas as formas separar os irmãos. Depois de cansados e quase sem poder manterem-se de pé, cessaram a briga. Ensangüentados e com dores por todas as partes dos corpos.
Ninguém consegue mesmo entender e decifrar o que se passa na mente humana. Brigaram por um sonho, por um objeto quase inacessível, num momento de devaneio do roceiro exemplo. E olha que em Pires Belo naquela época não tinha energia elétrica, nem mesmo em pequenos lapsos de tempo através de motor a óleo, o que somente ocorreu no futuro. Choveu bem naquele ano mas, o preço do feijão, mesmo do roxo de massa fina, nos mercados da cidade ficou aquém do esperado. Como se vê, a briga foi em vão, não os sonhos do caboclo violeiro.
(escrito em maio de 1992, postei sem fazer correção, da forma que estava guardado)