Lembranças de um pequenino

I

Mamãe puxava-me pelo braço, desesperada a procura de meu avô, que horas antes estava ao nosso lado, ali mesmo, na rua de cima de nossa casa, aquela ao fundo do quintal de minha avó paterna, onde morávamos a mais de 8 meses, depois de conflitos passados, agora encontrava-nos em situação delicada. Vovô era baiano, nascido entre a caatinga baiana, era considerado, ao menos ele achava que era um Cabra Macho. Homem daqueles de resolver na peixeira. Segundo suas "estórias", ele mesmo havia matado uma onça junto a um amigo, se não fosse verdade, ele não me contaria tal história, que na verdade custei a acreditar, até que em um dia encontrei a garra de algum animal muito grande, eu bisbilhotando em alguma de suas gavetas abarrotadas de lembranças, como ele mesmo dizia, o objeto era maior que os bagos de qualquer "cabra homî” desse mundo de meu Deuzu".

Naquele momento, o "animal" abatido era ele mesmo, sentia-se muito mal, deveria estar mesmo, por que a sensação foi criada por pura pirraça. Enfim, a complicação de tudo resumia-se a uma comida feita por minha "vó-drasta", sim, a mulher de meu avô, madrasta de mamãe. A denominação dada por mim, em um dia qualquer, dia do qual empinava minha pipa no telhado do boteco de vô Benício, o homem que se encontrava soltando fogo em um corredor de um hospital público, acabava de gritar loucamente a minha direção:

- Seu menino!!! Desça já de-desse "teiádo", seu menino. Vai cai dai "fí- di-rua" - ele berrando.

- Eu vou falar pra sua mãe Fábio, deixe ela chegar do serviço cansada, e encontrar o filho dela estatelado em meio a via pública! - "vó-drasta", apoiando a atitude de vô Benício.

Aquele sempre foi meu momento mágico, estar ali, com o sol do meio dia rachando minha cabeça, pés descalços em um teto lajeado fumegante, com olhos fixos em uma pipa de algum moleque da rua que tentava me "cortar – na - mão". Eu não era o melhor da rua, sempre perdia para meu irmão menor, ele era bem melhor que eu, sempre foi. Mas naquela hora eu não precisei de sua ajuda, ia ganhando espaço em meio a um céu azul, minha pipa "negra", como a chamava, feita de varetas de bambu legitimo, mesmo sendo daqueles vendidos pelo tio do caminhão de fruta, era o melhor, nem verdinho e nem maduro, no porto de envergadura, capaz de agüentar muitas batalhas aladas, encapado com saco de lixo e rabiola de sacola de supermercado, era de ultima geração, aquela sim fazia malabares fantásticos, se feita com cuidado para não ficar “pença”, era a melhor do bairro. Pena que não sei como terminaria aquele embate, já que fui forçado a descer do telhado na base da vassourada, era a forma carinhosa da qual sempre fui tratado, e no mesmo instante minha linha acabou arrebentando quando pulei para o terreno vizinho. Meio carretel de linha corrente 10 tinha ido junto, eu queria somente batizar, uma “veizinha” só, era como chamávamos quando a linha toda da lata era desenrolada. Vovô também adoraria ver aquilo, era questão de minutos. Mas vô Benicio tinha seus horários, e à hora sagrada do almoço com ele era totalmente sagrada, se um de seus netos não estivesse ali para degustar a boa comida da vó-drasta, o dia na seria bom, a velha pinga de barriu não estaria bem curtida, o doce de batata-doce vendido para um menino da vila não estaria suficientemente doce, a tubaína no saquinho era capaz de estar chôca, como a cerveja do fim de tarde palatizada pó um cliente, enfim, a bruxa estaria à solta.

Como sempre, sentei-me de costas para a porta da cozinha, tinha colocado a camiseta, mesmo que do avesso, de mãos e pés lavados, com a postura de um homem de verdade, como vovô dizia, eu ficava ali, fitando a latinha de azeite posta para o tempero do capim, era a alface do velho Benício, dizia ele quando comprava na feira de terça-feira, a feira da Rua Inaja-Guáçu, a mesma feira que ficava as quartas na Rua Laurentino Xavier dos Santos. À hora da refeição era o seu santo “Graal”. Nada no mundo o impedia de sentar-se a mesa, mesmo que solitário degustando seu alimento, afinal era aquilo que o deixava imensamente feliz durante aquele meio tempo. Vovô estava com saudades de sua terra, pois percebi por diversas vezes, seus olhos marejados, ao final de cada conto, canto, cordel. Por isso pedira a “vó-drasta” que lhe fizesse cuscuz de camarão, mais com um detalhe que até hoje não faz meu gênero, ela fez o prato quente. Baiano é assim, em maior parte de sua vida, a comida deve estar “quente”, como um acarajé, um bobó e seus derivados.

Vô Benício comeu aquele prato como se fosse um manjar, lambia os beiços como eu, mas como quando comia algum doce, um rabo de tatu, coração de batata-doce ou um cone de doce – de – leite, aquilo para ele era como se a Bahia estivesse em seu corpo. Forte como aparentava, repetiu seu prato por mais duas vezes, sem pestanejar, eu já não agüentava mais, comi uma única vez acompanhado de uma salada com o azeite da latinha divina e um grandioso copo de suco de laranja fruta, nada de algo artificial, era o que eu mais gostava, nada ali era artificial, tudo feito a mão, e pelo que me lembro, um carinho do qual sinto imensa falta hoje. Somente mamãe e “vo-drasta” sabem fazer aquela comidinha divina, o tempero é o segredo de tudo, mais esse tempero é do coração, não se compra nem se vende, nasce quando se é mãe.

Pena que vô Benício não conseguiu por um fim a aquela falta, após alimentar seu corpo, vovô sempre ensinava aos netos, principalmente os mais velhos, o agradecimento por toda aquela fartura, mesmo que mínima, pois em casa de gente simples, pinga mais não falta, vovô simplesmente unia as mãos já calejadas do tempo e agradecia veementemente e em alto, sonoro e bom som:

- MUITO OBRIGADO MEU DEUS, MUITO OBRIGADO, MUITO OBRIGADO!

Naquela noite, vovô não passou bem, o levaram embora em um carro cheio de luzes, que fazia muitos sons, ele passou muito mal por comer comida muito quente, Pai Pim me acalmou, meus irmãos Tatá e Flavio estavam dormindo, mãe Dete acalentava-se solitária, abraçou o colo em tom de tristeza e rezava constantemente.

CONTINUA ...