ENCONTRO DE TRILHA

Foi num sábado. Não chovia. Era o primeiro dia da Primavera, já fazia calor. Estava em Uberlândia, nas Minas, passando uns dias em casa do filho mais moço.

Meu filho terminava um trabalho apressado, pois nos queria prontos para ir ver o cunhado dele e o filho fazerem “trilha” (passeios de motocicleta) em um lugar fora da cidade.

Afinal, conseguimos nos aprontar e fomos à busca de uma fazenda, que a turma chama de “Fazenda do Baltazar”, na região do Pau Furado.

Tínhamos alguma referência do caminho, mas não o suficiente, o que nos obrigou a pedir informações numa venda, à beira da estrada, na frente da qual um grupo de homens se esparramava tomando cerveja.

Seguimos por onde ensinaram, mas tivemos que voltar. A indicação não estava muito certa, não. Afinal, do lado de dentro da cerca de arame farpado que acompanhava a estrada ao longo de seu comprimento, vimos meu neto e seu tio, montados naquela moto que mais parecia um bezerro imenso, rodando por sobre o terreno irregular.

Fizeram sinais e os seguimos, conseguindo chegar à tal fazenda, por volta das 4 da tarde. Pelo caminho conseguimos avistar uma represa. Naquela região, água não falta!

A fazenda tinha mais de cem anos, e a casa da sede já não existia. Em seu lugar mais acima do terreno, construíram outra que ainda conservava por sobre o portal de entrada, pintadas de forma simplista, duas hastes com lírios que se entrelaçavam no alto, abrigando entre elas as três iniciais do antigo dono. Lembro-me somente que tinha um H; devia ser de Heitor. Não sei. Essa construção mais recente, pelo ano gravado na porta, tinha 55 anos.

Havia muito pouco tempo para que eu colhesse informação o bastante para me satisfazer. Cada coisa contada era mais interessante que a outra.

Entramos e estacionamos o carro em um local fechado por muro baixo, todo ele com cochos abandonados. À direita, havia um curral coberto. A disposição dessas construções era difícil de descrever. O que mais me chamava a atenção eram as motos estacionadas nesse pátio. Devia ter umas 20, mas como me contaram que, de vez em quando, juntavam-se umas 70 motos no final da tarde.

Cada uma era mais linda de se ver que a outra. Combinavam várias cores, sendo uma cor a básica e outra ou outras servindo de enfeite. Era branco com enfeites vermelhos, pretas com azul, azul com branco... Uma infinidade de combinações.

Entramos. Fomos recebidos com a proverbial hospitalidade mineira. Uma senhora, Dª Ordelina, se apressou a nos mostrar mesinhas para nos acomodarmos, fora da casa, no terreiro. A família dela se movimentava para servir todo mundo. O marido, “seu” Baltazar, abastecia as mesas com cerveja e outras bebidas. Ela servia “o de comer...”

Pela presença do Juscelino, cunhado do meu filho, aproximaram-se vários trilheiros. Vou dar esse nome, apesar de não saber se é o certo, não cheguei a perguntar. Nossa mesa foi aumentando.

Por ali passeavam dois cachorros. Os nomes? Um até é comum, Bidu, mas o outro se chama Henrique! Nome de gente.

Fui até a cozinha. Uma mocinha estava toda atarefada lidando lá. Dª Ordelina me mostrou os doces que fazia, de leite, pudim e outros.

Como não tínhamos almoçado ainda, ela nos serviu um prato com almôndega e mandioca cozida bem amarelinha. Eles chamam a almôndega de “bola de fogo”. Porque será, heim? Pimenta talvez ou alguma lembrada dor de barriga... Depois veio o pudim de leite, quantidade boa deu para matar a fome e o gosto.

Aos poucos foi chegando mais trilheiros. A roupa que usam parece uniforme de astronauta, de tanta parafernália: macacão colorido, conforme o gosto do dono, mas tem que ter algum detalhe em preto, capacete, colete de plástico, botas altas, super reforçadas, luvas etc. Este etc. é por conta daquilo que não reparei, não vi ou não sei.

Cumprimentam-se:

- E aí, cara?

Jogam as luvas no chão, num canto, enfiam a cabeça embaixo da torneira e a sacodem para tirar o excesso de água. Acomodam-se. Pedem o que comer e beber. Tiram o colete protetor e põem junto às luvas.

Os apelidos se sucedem: o Juscelino, eles chamam de Jussa ou de Tibeiço (ele tem os lábios grossos); tem o Osorinho (José Osório); o Claudio é chamado de Louro José porque seu macacão é verde! Tem o Trinta, Mandi (nome de peixe. Por que será?), Banho da Lua, Brasília.

Que pena, não deu tempo e nem eu tinha papel para anotar tudo! Com certeza vão faltar muitos nomes. Prometi mandar esta crônica para o Jussa e vou pedir que me mande mais nome de trilheiros e dos lugares por onde trilham.

Ainda consegui anotar alguns nomes dos lugares. Disseram: Carrapato, Marimbondo (e lá tem os bichos), Morro do Eden, Mãe preta, Morro do Desafio (pro lado do Pau Furado ou Olhos D’água).

Calada, encantada, escutava os “papos” de um lado, de outro. Falavam das motos como se fossem suas próprias mulheres ou filhos ou namoradas, com carinho, atenção. Preocupavam-se com os problemas, como se fosse doença. Vão contando:

- Quando dei a volta, soltou a ...(não sei o que é.).

- O ... (não sei o que) me deixou na mão....

- Quase me esborrachei...

- Cara, lá no Carrapato me aconteceu uma!

E assim seguem. Entra no meio os comentários sobre os defeitos que as motos apresentaram. Cada um tem uma idéia diferente para aquilo. Conserta assim, conserta assado, põe aquilo, tira o outro...

O Jussa é muito respeitado. Ele pilota talvez melhor que a maioria. Faz manobras que até Deus duvida. Foi meu filho quem me contou isso. Disse com respeito e admiração que ele é “o cara”.

É, eles são “os cara”. São os donos do mundo deles, dirigem, entendem, enfrentam, vencem, caem, levantam, machucam, contam, escutam, cansados, suados.

A tarde foi chegando, dando lugar à penumbra. Fomos para o pátio, já agora coalhado de motos de todo jeito. Os comentários se sucediam: essa é importada, aquela é maior, esta aqui é dum “cara” meio doido. E por aí afora...

Meu filho foi dar uma volta com a mulher. O neto já tinha dado sua escapulida.

É hora de partir, voltar pra cidade. Aos poucos foram saindo, um a um. Não cheguei a contar, mas era muita gente mesmo. Saem acelerando, fazendo as máquinas roncarem, como a dizer: estou indo e vou deixar saudade...

Com certeza, na semana seguinte, vão todos trabalhar com mais gosto...

Nosso carro ficou com a bateria descarregada. Veio gente ajudar até que pegou.

Saímos. Havia certo silêncio na viagem de volta. Lembranças dos casos, cansaço, satisfação. Fartura de amizade, companheirismo, solidariedade. Mineiro é assim.

Em casa, à noite, o Jussa me fez vestir parte do uniforme, tirou fotos. Valeu a brincadeira!

Eu conheci um pedacinho do mundo maravilhoso da trilha.

Se não fosse pela idade, até que eu toparia uma aventura dessa!

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 26/03/2011
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