O grito dos inocentes
 
Alguns fatos se tornam inesquecíveis. Assombram. Acordamos na escuridão do quarto e os revivemos a partir de um detalhe qualquer. Um sonho interrompido. Um gato na plenitude da vida instintiva. Um grito. Passos desaparecendo apressados e lá está de volta a lembrança da madrugada em que ela sumiu. Foram muitos os mistérios em minha vida, nenhum verdadeiramente real, pois a realidade é aquilo que nos toca, pelos sentidos, o sentimento ou a razão.  Os mistérios de minha vida vieram através de cenas de filmes, de palavras alinhavadas em um livro, de notícias do cotidiano distante através da imprensa. Mas esta história da qual trato agora é uma história real. Aconteceu realmente, mistério não compreendido, não resolvido. Ouviram os passos, naquela noite. Ouviram os cães ladrando. Nenhum barulho mais, nenhuma pista. O grito, se houve, foi interrompido na garganta de quem se mostrava apenas mais uma jovem inocente e cheia de sonhos. Na casa de onde desapareceu, nada se ouviu. Nenhum som estranho, ranger de portas e janelas, chaves na fechadura, portões se abrindo. Mas na manhã seguinte ela não estava lá, a moça sem história oculta aparente, sem mistérios, sem dramas. Inocente e pura, o legista confirmou. Foram dias de busca até que o corpo apareceu, boiando na lagoa, os cabelos negros espalhados em torno da cabeça formando um leque. Ninguém ouviu seu grito mudo se é que houve esse grito. Mas eu ainda o ouço preso em minhas lembranças que são libertadas pelos temores das noites solitárias como foi para ela, àquela noite.

(Escrito para o BVIW)