A GUERRILHA
           TESTEMUNHO DE UM FAZENDEIRO


BASEADO NO LIVRO “À SOMBRA DO IMBONDEIRO” DE ANTÓNIO MARCELO
 

Luanda viveu um período de tranquilidade em que nossas preocupações dividiam-se entre o trabalho − motivado por um crescimento econômico excepcional − e o lazer. Luanda atingia uma população de seiscentos mil habitantes e se dividia nitidamente em duas partes: a cidade desenvolvida, exuberante, confortável e com o mar à beira plantado, a cidade do asfalto e os muceques de terra vermelha, com uma imensidão empoeirada de cubatas e casas modestas, onde os africanos, em maioria, partilhavam o espaço com brancos empobrecidos ou comerciantes.
A bela cidade se alargava com novos bairros, novas casas e novos prédios e o comércio se multiplicava com o surgimento de supermercados e demais transformações trazidas pela modernidade. Nada faltava. Nas avenidas trafegavam os vertiginosos belos carros europeus e americanos e não mais se compravam carros pelo catálogo, como no tempo de meu pai. Não mais se esperava pelas quitandeiras para comprar peixe fresquinho ou laranjas. As lojas de importados proliferavam por toda a baixa de Luanda. As praias regurgitavam de gente aos sábados e domingos. O número de barcos cruzando a baía de Belas a caminho do Mussulo aumentava a olhos vistos. Uma vida de paz, progresso e bem-estar.
Já no interior a situação não era tão pacífica e o progresso não era tão visível. A parte norte, mais povoada − a chamada área do café onde situava-se Uige que fazia fronteira com o antigo Congo Belga (ou Congo Leopoldoville) e o antigo Congo Francês (Congo Brazzaville). Essa imensa região do Congo era rica em diamantes e em matas com árvores gigantescas, sob as quais se plantavam os cafeeiros que se beneficiavam da meia sombra oferecida. Lá situava-se o foco dos guerrilheiros do FNLA que, apoiados pelo Congo Leopoldoville, mantinham os brancos em constante alerta e não davam trégua aos militares. 
 
Não se repetia o terror de 1961, quando eclodiram os primeiros movimentos de matança de brancos, mas a tensão persistia. Nas povoações vivia-se sem temor. Entretanto, as fazendas vez por outra sofriam ataques, e as baixas eram irreparáveis. O pior eram os perigos à espreita nas estradas, não as asfaltadas, mas as de terra batida que constituíam a grande parte da rede rodoviária de Angola. Nelas se davam ferozes ataques. Quiculungo ficava no início de uma grande mata, com cerca de 100 mil hectares, denominada Buíte, pertencente à área de influência do Uije, onde estavam nossas fazendas. Uma delas havia recebido o nome da mata: Roça Buíte.
Ali se refugiavam trinta guerrilheiros que, não mais que uma vez por mês, no raiar do sol, colocavam-se em posição de tiro, com suas metralhadoras, esperando silenciosamente a próxima vítima. Posicionavam-se nas curvas da estrada poeirenta, escondidos pelas árvores frondosas que compunham a mata. O ataque não era dirigido a nenhuma pessoa especificamente apontada por maus-tratos infringidos aos trabalhadores, ou pela esperteza com que os enganavam. A escolha da vítima era aleatória, circunstancial. Decidida a ação, o primeiro veículo que aparecesse, fosse carro, carrinha, jipe ou caminhão, seria atacado e as trinta metralhadoras disparariam centenas de balas sobre o alvo humano. Nunca vi o resultado desses ataques, mas diziam que nada sobrava dos corpos em estado integral, os pedaços se espalhavam pela terra empoeirada.
Depois fugiam para se refugiarem na imensidão da floresta.
Amigos e familiares choravam, lamentavam, mas não arredavam pé de suas casas.
As tropas portuguesas na região, que diziam ser compostas por cinco mil elementos, eram acionadas. A lentidão da resposta e a dificuldade, senão impossibilidade de um contra-ataque através de região tão perigosa e de mata tão densa, estavam a favor dos guerrilheiros. Dias, meses e anos transcorriam ouvindo-se as mesmas histórias, sem que as tão reclamadas atitudes efetivas de contenção ao terror acontecessem.
Com a morte de meu cunhado Chico, os três sócios gerentes decidiram não admitir um novo diretor para as fazendas. A cada semana um deles faria o gerenciamento, ficando a quarta semana sem visita.
No Lucala, onde se situava a cerâmica, a 120 quilômetros antes de chegar a Quiculungo, esperava-nos uma metralhadora tcheca, munições e granadas, para uso exclusivo dos sócios.
Eu ia com meu carro Mercedes Benz, que diziam ter a chapa mais grossa. Era reforçado por baixo para proteger o cárter, e outras peças mais sensíveis, das pedras da estrada de terra que antecedia os cerca de 40 quilômetros do destino final. Nas primeiras viagens, assim que entrava no carro colocava o cinturão com as granadas e munições. A metralhadora seguia ao lado, travada, mas pronta para atirar.
Logo entendi que armar-me dessa maneira era falta de bom senso, pois se atacado, não teria tempo nem de um suspiro. Então, levava o armamento a meu lado, para eventualmente usar depois de Quiculungo, durante as visitas às fazendas. Essas eram feitas com toda a segurança.
Seguia de jipe com o gerente das fazendas e um recuperado. À nossa frente um unimog com dez militares: oito sentados lateralmente na carroceria, em dois grupos de quatro, e na frente um motorista e mais um soldado. Atrás de nós ia um jipe com nossa segurança particular formada por mais três recuperados e um motorista. Recuperados eram ex-terroristas prisioneiros de guerra, com boa preparação militar, treinados e mentalizados pela policia politica PIDE para lutarem do nosso lado. Tinham uma agilidade extraordinária e eram confiáveis, pois estavam ali como traidores do exército inimigo e, portanto, nunca se rebelariam contra nós.
 
O acompanhamento militar trazia segurança, mas também transtorno, pois sempre atrasavam a viagem pela complexidade da operação e, consequentemente, a programação das visitas. Além disso, obrigavam os gerentes das fazendas visitadas ou suas esposas, a preparar uma farta refeição para toda aquela gente. Por essas razões, depois de um ano desistimos dos militares e nos deslocávamos apenas com nossa segurança particular.
Essas visitas, na realidade, não tinham cunho gerencial. O objetivo principal era oferecer apoio moral aos empregados, verdadeiros heróis que arriscavam a pele para defender nosso patrimônio. Eles mereciam o risco que eu corria, pelo menos era assim que eu encarava os perigos dessas viagens.


 
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ANTÓNIO MARCELO
Enviado por ANTÓNIO MARCELO em 18/03/2011
Reeditado em 04/08/2011
Código do texto: T2856107
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