O TEMPO E EU
O TEMPO E EU
Francisco Obery Rodrigues
oberyrodrigues5@hotmail.com
Filho de sobralenses, nasci em Mossoró, na antiga Rua Pe. João Urbano, dia 20 de setembro de 1924, numa tarde de sábado de céu azul, com o Vento Nordeste soprando forte. Nove meses em gestação, acostumado com a escuridão do ventre de Nenen Rodrigues, de repente sinto-me empurrado, pegam-me pelas pernas, põem-me de cabeça para baixo para chorar; se não chorasse, davam-me uma palmada na bunda. Meus olhos, ainda mal enxergando, sentiram o clarão estranho daquela tarde e viram alguns vultos a mexer comigo. Passaram algum tempo lavando-me e, depois de me vestirem, debruçam-me sobre o colo de minha mãe e, instintivamente, procuro-lhe o seio e o sugo avidamente. Foram nove meses. O Tempo começava, assim, a governar minha vida.
O ano de 1924, contava minha mãe depois, fora de abundante inverno, grande cheia do nosso Rio Mossoró e muita fartura, como aconteceu em 1934, 1944, 1954 e 1964, o que parece ser um fenômeno cíclico. Embora no Nordeste praticamente só existam duas estações, Inverno e Verão, no calendário oficial, em Setembro, no dia 23, termina o Inverno e, logo a seguir, vem a Primavera, que vai até Dezembro. É em Setembro que começam a florar várias espécies de árvores, particularmente os cajueiros e as mangueiras, para nos presentearem com seus frutos suculentos, de delicioso sabor. Mas, esta foi uma introdução talvez supérflua, pois, o que pretendo falar aqui é do meu relacionamento com o Tempo. Este, sob os pontos de vista filosófico e teológico, é tema muito complexo. Quem, no meu modesto entender, melhor o definiu, foi Santo Agostinho. Mas, não pretendo aqui dissertar sobre esse controvertido assunto, até por falta de capacidade; apenas falar sobre como ele tem agido na minha vida.
O Tempo e o Vento têm sido constantes objetos de minhas crônicas pela importância que exercem em nossas vidas e de tudo que existe na Natureza. O Vento tem um certo vínculo comigo. Já falei sobre nossa amizade várias vezes. Acompanha-me desde a infância, quando levantava minhas pipas, até hoje. Em certas ocasiões até dialogamos. O Tempo, este, tudo desgasta, devagar, lentamente, é verdade, mas é evidente e visível a sua ação. Faz parte de sua função para a renovação da vida humana, da animal, vegetal e até mineral. Particularmente nos homens, até determinada idade, quase não nos apercebemos: sentimo-nos bem, idealistas, confiantes, embora os sinais do desgaste, que já começam depois dos trinta, talvez aos quarenta ou aos cinquenta - quem sabe? - alguns cabelos brancos, pequenas rugas e a capacidade física, dependendo da vida que cada um leva, naturalmente diminuída. Não é verdade que Deus criou no mundo cada ser e cada objeto a seu modo, com destino já predeterminado, até os cabelos da cabeça contados? Não poderia o homem, com o livre arbítrio, que Ele lhe deu, mudar o seu próprio destino? Mas tudo o que Ele fez, com tanto esmero, em muitos milhões de anos, sofre a ação do Tempo, que Ele próprio governa. Rios, mares, montanhas e vales, lagos e florestas, seres animados e inanimados, tudo se modifica ou se extingue. Reis, imperadores e ditadores que se julgavam com eterno poder foram ou são aniquilados, muitos até esquecidos. Quem nunca programou construir, destruir e, simultaneamente, reconstruir ou renovar tudo, num processo permanente de recomeço da vida? Tudo o que os nossos olhos viram, admiraram e amaram ao longo da caminhada vai se modificando ou deteriorando. O Tempo é um instrumento do Criador, que age ao seu alvitre, dentro da programação que Ele próprio traçou desde o início. Não fosse o homem um insensato, talvez as coisas pudessem ser diferentes. Quem sabe?
No meu caso pessoal, as brincadeiras inesquecíveis, as diversões de toda natureza, as aventuras e as desventuras, tudo o que vivi, está ainda miraculosamente na memória. Em 1943, ingressei no Banco do Brasil. Tendo casado em 1947, já em 1948 começaram a vir os filhos, em sequência, até a décima primeira em 1963. Em 1973, foram vindo os netos, que até hoje são dezessete e a seguir os oito bisnetos, até agora.Nossa descendência, minha e de Brasília, filhos, netos, bisnetos, genros e noras, já conta 46 pessoas. Jamais pensara merecer de Deus tamanha benção.
Após trinta anos de Banco do Brasil, em Mossoró e depois em Caruaru, que não conhecia, muita coisa mudou na minha vida. Os hábitos, a convivência, a sociabilidade, novos amigos, tudo praticamente se modificou quando fui transferido para Caruaru, onde começamos vida nova. Graças a Deus, eu, Brasília e os quatro filhos que nos acompanharam, nos demos muito bem naquela cidade, onde fomos recebidos com muito carinho e fizemos excelentes amigos. Permanecemos lá dois anos e meio. Aí veio a aposentadoria, com mais de trinta e dois anos de serviço, Ao chegar à casa depois do último dia de expediente, comecei a refletir que ali findara uma rotina de mais de trinta e dois anos. E o que iria fazer no dia seguinte? Então, sobreveio-me forte emoção e não consegui segurar o pranto. Amigos e colegas foram levar-me o seu conforto. Confesso que deixei Caruaru com muita saudade, saudade de sua topografia, de seu clima, de suas feiras tradicionais, de sua impressionante arte cerâmica, de seu São João, do Alto do Moura com sua extensa rua, onde se saboreia, nas várias dezenas de restaurantes, os mais diferentes modos de se preparar o cabrito, e outras características da terra.
Quero agora lembrar os acontecimentos dos últimos anos, desde quando cheguei a Natal, em agosto de 1976, para residir numa casa que já me pertencia e onde já moravam cinco dos meus onze filhos. Sendo uma casa pequena para uma família grande e possuindo um terreno em Lagoa Nova, resolvi construir uma morada maior, com duas salas, cinco quartos, um escritório, garagem para quatro carros, amplo terreno para plantar fruteiras e fazer um jardim – ocupação a que – qual o jardineiro Timóteo, do excelente conto de Monteiro Lobato - me dediquei com muito amor e era objeto de admiração de quem o via. Plantei até duas palmeiras imperiais, cujas mudas trouxe de Mossoró e estão ainda lá, imensas e altaneiras.
Cheguei aqui já prestes a completar os cinquenta e três anos, sentindo-me ainda vigoroso para essa idade. Nessa nova casa, depois, embora lamentando, derrubei dois abacateiros que plantara e já produziam, e um coqueiro, para construir uma piscina. Minha casa passou assim a ser, aos domingos, o ponto de reunião de toda a família. Era um prazer para mim e para Brasília. O meu tempo de aposentado em Natal e na casa nova era tomado, além das obrigações de dono de casa, a cuidar do jardim que cultivei, a ler e ouvir minhas músicas preferidas. Às vezes, saía por aí, à toa, para passar o tempo, umas poucas horas fora da rotina.
Em 1981, fui convidado pelo Dr. Álvaro Mota para trabalhar no Banco do Estado do Rio Grande do Norte, como seu assessor especial. Relutei, alegando que já estava aposentado há cinco anos e não queria ter mais compromisso, sobretudo com horários determinados. Então, ele deixou o horário a meu critério. Terminei por assentir, tomando posse lá em fevereiro de 1981. Acostumado à organização do Banco do Brasil, tive uma grande decepção quando me deparei com a “bagunça” que eram os serviços do BANDERN: não havia normas, nem hierarquia, nem disciplina: funcionava por um milagre. Preparada por mim uma reforma dos Estatutos, por incumbência do presidente, e aprovada pelo Banco Central, criando as Diretorias Financeira e de Crédito Rural, fui surpreendido com o convite para ocupar a primeira, que exerci durante quase cinco anos. Mas o final dessa história da minha permanência no BANDERN é constrangedor para mim, desabituado que era aos caprichos políticos, e não cabe contá-la aqui.
Agora, nesta longevidade que Deus está me concedendo, posso dizer que tenho sido feliz, embora uma felicidade envolta em solidão e nostalgia, causadas em grande parte pela doença que afeta minha esposa. A idade já me privou – talvez prematuramente, por qualquer razão – de alguns dos melhores prazeres da vida, desde os do sexo até os do bom prato, e da capacidade de viajar, limitando até o deleite da leitura, pelo cansaço da vista ou pela indisposição física. Há muito já não tenho o gosto e a liberdade de poder dirigir, ficando na dependência dos outros. A minha disposição física e até mental, venho, nestes últimos anos, sentindo-a um tanto abalada. Depois, em conseqüência de uma cirurgia de coluna, já não sinto a firmeza de antes. Além do mais, em julho de 2010, tive que submeter-me a uma angioplastia para implante de três “stents”, embora o velho coração esteja ainda sob razoável controle.
Vários dos meus projetos sobre alguns temas interessantes da história de Mossoró estão suspensos, alguns cancelados definitivamente. Hoje, aos 86 anos, apesar de curtir uma solidão que só a minha alma entende, considero-me um homem feliz por tudo de bom que Ele me tem dado.
Assim é a Vida, sempre à mercê do Tempo, que é governado por Deus.
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