Marcando o tempo para não esquecer.

Vivi alguns anos na cidade em que nasci,  poucos se comparados  com o tempo que já vivi fora de lá. Ao mesmo tempo foram muitos já que as raízes do que sou lá ainda permanecem. No meu ofício de escrever, o maior dos meus ofícios, pois é dele que meu espírito se alimenta, embora nada me renda para o alimento do corpo, é lá que busco, com a ajuda da memória, subsídios para as minhas histórias. E são essas histórias que permitiram que eu descobrisse os meus conceitos de vida, os conceitos que determinam a minha maneira de pensar, falar e agir.

Algumas coisas que deixei para trás certamente nunca recuperarei nem reviverei. A simplicidade da vida em uma pequena cidade do interior de Minas, cercada por pequenos morros, só pude perceber depois que saí de lá. Ainda  nem estava na adolescência e sonhava viver uma vida bem diferente da que vivia ali, queria uma vida movimentada e cheia de sons.Hoje o sonho vai no sentido inverso, na busca dessa simplicidade, na recuperação de um tempo sem relógios. Pura fantasia. No meu pulso esquerdo, como uma algema colocada pelo poder do consumismo, um entre meus muitos relógios mostra continuamente que o tempo não para, ela vai sempre para frente. Um relógio dourado e um prateado e um prateado e dourado. Um preto, um branco e um marrom, cada um para ser usado em um momento diferente da vida, com uma roupa diferente e mesmo assim continuo atrasada para os compromissos. Um relógio na sala de jantar avisa continuamente que mais uma hora passou, o outro na cozinha mostra que cada hora pertence a uma fruta diferente. É impossível perder a hora, é impossível se esquecer da hora. O fogão mostra a hora certa, o celular desperta na hora marcada. E a única coisa que eu gostaria agora era viver naquele tempo em que eu nem tinha relógio porque era tão estabanada que certamente o perderia.
 
Ah, aquele tempo em que a vida era controlada por sons que se perderam no tempo...

Eu me lembro ainda e com saudades desses sons que motivavam o meu corpo a reagir. O canto do galo na madrugada, o apito do trem, a sirene da cerâmica, a oração do anjo, que os pequenos rádios colocados nas salas de visitas, ajudavam a espalhar. Os sinos da Igrejinha que aos domingos chamavam todos para a missa. Eram eles que marcavam o meu tempo, companheiros que sempre foram de meu relógio biológico. Hoje, além dos relógios espalhados pela casa e pelo corpo, instalados em todos os lugares, no carro e nas ruas, preciso de uma agenda para carregar dentro da bolsa e me lembrar das coisas que preciso fazer.  Que tenho que fazer. E por isso talvez acabe me esquecendo de fazer as coisas que me dão prazer.

Em "Escritos de Março" (1)