MEMÓRIAS DA INFÂNCIA VII: UM GALO SEM CABEÇA


Vejo a vida passar por mim cada vez mais velozmente, conduzindo-me, não raras vezes, a outras paragens, sempre com renovado entendimento, e as lembranças estão constantemente a provar-me que o passado não morre dentro de nós.

Penso que deveria decorrer o ano de 1976, quando fui passar aquelas férias de verão com a avó, na aldeia, e ela pretendeu fazer uma bela canja com o maior galo que já havia sido criado lá em casa. Numa época em que apenas havia rádio - pois sobre televisão ainda pouco se falava - os assuntos da natureza eram a distração predileta da maioria dos habitantes da terra que me viu nascer.

Foram tempos difíceis aqueles, vividos nas aldeias de Portugal, na década de 70. Época de revolução e novas adaptações, num país que vivera mais de 40 anos sob a ditadura salazarista e se via a braços com a nova realidade que era viver em democracia.
Nas aldeias, a criação de galinhas, patos, perus, coelhos, vacas, cabras e porcos era um costume salutar adotado por todas as famílias e, também, uma ótima forma de dar o primeiro passo para uma vida sustentável e auto suficiente. Criando seus próprios animais, as pessoas podiam usufruir dos ovos, leite e carne sem depender das ocasionais feiras, podendo também economizar, além de que ainda podiam ainda vender os produtos excedentes.

Em casa dos meus avós paternos sempre houve um galinheiro, do qual minha avó muito se orgulhava. Apesar de não ser necessário ter um galo para as galinhas botarem ovos, este servia para manter «a ordem social» no galinheiro e garantir a procriação, pois, como diz o povo e com razão, "de ovos não galados não nascem pintos". Sem falar que «galinhas sem galo no galinheiro ficam muito estressadas e depois não querem chocar os  ovos», como dizia, tão sabiamente a avó Maria Olívia.

Era belo o galo da avó! Possuía enormes esporões* que pareciam cintilar ao sol. O vaidoso galináceo gostava de exibir sua plumagem colorida e brilhante e sua grande e vistosa crista vermelha para as galinhas da vizinhança. Tinha lindos olhos azuis e seu bico era forte e encurvado. Lembro-me que a avó, conhecedora de dezenas de provérbios, dizia muitas vezes: «De ave de bico encurvado, livra-te dela como do diabo!» Mas o maior valor do galo estava no seu canto magistral, grave e prolongado, que podia ser ouvido a grande distância.

Sempre que eu ia passar férias com a avó, acordava todas as manhãs com a sinfonia do galo cantor, que era um verdadeiro regalo. Aquele galo era também o terror das galinhas das redondezas, que ele "galava" com muita satisfação. E nunca faltavam ovos lá em casa, pois as três ou quatro galinhas existentes, punham ovos praticamente todos os dias, que a avó recolhia com carinho.

Um belo dia deixou de haver ovos nos ninhos das galinhas. No seu lugar, apenas cascas quebradas. A avó dizia que grande mistério se estava a passar dentro do galinheiro. Curiosa como era, precisava descobrir o que se passava. Ora, como galinha bota seu ovo logo pela manhã, só precisava  ir ao galinheiro, bem cedo, e ficar encondida, à espera que aparecesse o ladrão, possivelmente alguma ratazana ou doninha.

E, se bem o pensou, melhor o fez. Então, no dia seguinte, esperou que os galináceos saíssem para o quintal, onde costumavam esgravatar à sombra do grande negrilho. As galinhas saíram, mas do galo nem o menor sinal. A avó, já desconfiada, pegou numa vara de marmeleiro e, pé ante pé, entrou cuidadosamente no galinheiro, onde o galináceo de bela plumagem se banqueteava com os ovos que as galinhas tinham botado naquela madrugada. Ao primeiro cacarejar de alarme de uma das galinhas, o galo tentou fugir, mas não sem antes ter bicado a avó num braço, do qual  jorrou um pouco de sangue. Depois fugiu para o quintal e saltou o muro. A revolta da avó foi tanta que correu atrás dele, com a vara em punho, na tentativa de dar um corretivo ao ladrão de ovos. No quintal, a bicharada, estava toda em alvoroço.

Subiram morro, desceram morro, correram as redondezas, até que o galo se deu por vencido e regressou ao galinheiro, julgando estar seguro em seu doce lar. Ledo engano! A avó pegou o bicho, que já estava de bico aberto, cansado de tanto correr, e disse: «Quatro galinhas e um galo, comem como um cavalo! Já era tempo de fazer de ti uma bela canja!» Amarrou-o dentro do galinheiro, não fosse ele fugir novamente, e tratou de afiar o machado e preparar um pote com sal e vinagre, no qual iria aparar o seu sangue, para mais tarde preparar um belo arroz de cabidela. Só faltava um tronco de madeira no qual pudesse colocar o belo e emplumado pescoço e, assim, poder desferir um certeiro golpe com o machado. Minha avó estava acostumada a fazer este tipo de coisas, e nenhum trabalho lhe metia dificuldade, muito menos converter uma ave em refeição. Mas, mal ela sabia o que estava para acontecer.

«Galo velho, faz bom caldo! Este ladrão de ovos vai dar uma bela canja e um rico arroz de cabidela!» Dizia ela, enquanto uma vizinha ajudava a segurar a ave e eu fechava os olhos para não ver. Desferido o certeiro golpe, a cabeça tombou para um lado e o galo, que mais parecia um zombie, surpreendentemente, soltou-se das mãos da avó e correu rapidamente, firme e hirto, para dentro do galinheiro. Não queríamos acreditar naquilo que nossos olhos acabavam de ver: um galo sem cabeça, correndo! A avó exclamou: «Com mil demônios! Maldito galo, belzebu**! Em toda a minha vida não vi nada igual!» Não foi preciso fazer mais nada: o pobrezinho, depois que entrou no galinheiro, logo sucumbiu.

Escusado será dizer que daquele galo não se fez canja nem arroz de cabidela (ninguém quis comer o galo Belzebu) e que, a partir daquele dia, nunca mais faltaram ovos no galinheiro.
Durante vários anos a avó contou e recontou a história do «galo Belzebu», um mistério que nunca quisemos tentar compreender.

Recordo muitas vezes a imensa alegria que minha querida e saudosa avó sentia na companhia de seus animais de estimação.
Recordo, também, as histórias lindas que ela me contava, nos longos e frios serões de inverno, passados à volta da lareira! Contava, repetidas vezes, como as raposas tentavam entrar no galinheiro para comer uma ou outra galinha, nas noites em que nevava; e também o triste episódio que foi a perda do cachorro Lolito, caçado por um lobo.

À pessoa de Bem, que foi minha avó Maria Olívia, eu dedico este texto. Obrigada, avó querida, por toda a dedicação, carinho, amor e brincadeiras da infância!



* esporão = uma espécie de unha localizada na parte posterior das patas do galo, usada como arma de ataque, durante, por exemplo, a disputa por uma fêmea ou por território.
** belzebu = demônio


(25/02/2011)
Ana Flor do Lácio
Enviado por Ana Flor do Lácio em 27/02/2011
Reeditado em 06/06/2013
Código do texto: T2817557
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