um VELÓRIO ANIMADO

Dona Carola morreu. Era somente o que se falava naquela tarde de 13 de Agosto de 1.980, no arraial do Poço Verde, em Minas Gerais.

Ela era viúva do Sr. Josué da Costa. De família tradicionalíssima da região. Foram os avós que construíram no arraial as primeiras casas e os ranchos, estes destinados aos agregados. Deixava cerca de quatorze filhos, todos casados e com prole. Alguns já tinham diversos netos.

Era comadre de quase todo mundo na Vila. Perdera a conta de quantos afilhados tinha. Punha bênção em todos que a procurava. Era respeitada como se fosse uma líder espiritual. Aconselhava a quase todo mundo quando das desavenças domésticas. Ajudava nas dificuldades financeiras dos mais desprevenidos, fornecendo madeira para construção, terra para plantar, dentre outras coisas. Fornecia leite a um sem número de crianças que se dispunham a buscar na Fazenda, onde ultimamente morava com o filho João e a nora Maria Amélia.

Carola morrera. Muitos do arraial iriam passar a noite na fazenda. Era obrigação de todos comparecerem ao velório da Dona Carola. Sobre a falecida, no velório, somente se ouvia glórias. Era bondosa, religiosa, tinha bom coração, era isto, era aquilo. Na verdade, para quase todos, era como se fosse uma santa. Parecia exagero mas, de ninguém, ouvira nada de mal ou recriminatório sobre as ações praticadas por Carola.

A casa era antiga. Tinha mais de meio século de construída. Pé direito alto, fora assoalhada pelo mestre Romão, o assoalhado chegava quase ser uma obra-prima, de tão perfeito que ficara. As janelas eram enormes. De dentro pra fora a soleira batia perto do peito. Do lado de fora, tinha pra lá de dois metros de altura, dado ao tamanho do antigo alicerce feito de pedra sobre pedra.

O velório transcorria normalmente. O corpo da falecida já dentro do caixão, estava colocado bem no meio de uma grande sala de estar. Adiante, ficava a cozinha. Naquele instante repleta de pessoas nos afazeres de praxe quando de velórios. Preparavam diversas qualidades de quitandas, chás e cafés a todo instante. Antes da sala onde estava o corpo ficava uma sala de visita, onde os homens das cercanias e do arraial falavam de tudo, menos sobre morte ou da falecida. No terreiro, ficavam os mais jovens ao redor de pequenas fogueiras. Os assuntos eram os mais variados possíveis. Contavam para as mocinhas algumas estórias sobre assombração, alguns mais afoitos contavam que presenciaram certos acontecimentos horríveis, somente para assustá-las. O clima era propício para se cometer certos exageros. Alguns mais engraçadinhos contavam até piadas, e olha que eram quase todos afilhados de Dona Carola.

Um problema atormentava os presentes, a iluminação. Os dois pequenos botijões de gás que alimentariam os lampiões estavam vazios. A iluminação estava sendo feita através de lamparinas e velas espalhadas por toda casa. Daquela forma, era insuficiente. Faziam-se diversas sombras dada a quantidade de pessoas na casa. Na dispensa tinha um botijão grande abastecido que não estava sendo utilizado. Pensaram que tivessem resolvido o problema, mas não ficava bem colocar o lampião naquele botijão. A altura não era ideal para iluminar e alça-lo era por demais incômodo.

Nestas ocasiões sempre aparece um sujeito disposto e engenhoso para solucionar o problema. Logo, o José Rosa se dispôs a transferir o gás do botijão grande para as cotas pequenas. Alguém disse que era perigoso. E ele disse que não era, que era coisa muito fácil, já estava acostumado a fazer a transferência do produto de um para outros botijões.

Pouquíssimas pessoas sabiam o que o José Rosa pretendia fazer, então ele foi até a dispensa, pegou a cota grande, trouxe para a cozinha e iniciava a operação de transferência do gás. Sem que tivesse qualquer chance, o gás começou a vazar e o fogo do fogão a lenha veio sobre ele instantaneamente. Ele saiu gritando e correndo a procura do rego d’água, saiu quase ileso do acidente que provocou.

As mulheres que estavam na cozinha correram todas atabalhoadas para a sala de estar, gritando e derrubando umas as outras, apagando velas e lamparinas. Evidentemente esbarraram no caixão que estava atravessado na sala, derrubando no chão o corpo de Dona Carola. Quem já estava na sala do velório, não sabendo o que se passava também começou a correr. Pisotearam a falecida. A Porta não suportava todos que queriam sair. Resumindo, quase ninguém conseguia sair. A escuridão tomou conta da casa. A gritaria era ensurdecedora. Alguns, tomados pelo medo, arriscavam a pular pela alta janela. Pularam, quebraram braços e pernas, ficaram cheios de escoriações.

Uma gorda passou para fora da janela uma perna e resolveu não pular, tamanha era a altura e, voltar ficou impossível, dada a pressão do povo querendo sair. No empurra empurra, ficou ela pra lá e pra cá. Contaram-me depois que sem pular ela conseguiu ficar com um braço quebrado e o corpo todo roxo. Quem estava no terreiro, sem saber o que se passava, também começou a correr. Alguns mais assustados chegaram a montar em cavalos amarrados. Sucederam-se tombos cinematográficos. Todos correram em quanto agüentaram. Quem estava chegando e via aquele alvoroço, sem antes perguntar nada saía correndo também. Lembro-me de um velho que depois de correr bastante, não agüentando mais se mover, atravessou por debaixo de uma cerca de arame e começou a rezar, depois disse: --- “seja o que Deus quiser eu espero aqui”, armando-se de um revólver e se pondo a esperar. Um sem número de pessoas ficaram machucadas, braços e pernas quebrados. Pensando bem saíram no lucro, dada a situação que ficou o corpo de Dona Carola. Coitada! Não merecia isto, não merecia mesmo. Até o vestido que as comadres haviam feito com o maior carinho, ficou literalmente em tiras, os cabelos soltaram dos grampos, ficaram todos sobre o rosto. Braços e pernas não queriam mais se ajeitar dentro do caixão. Arrumaram aqui e ali e abreviaram o enterro.

Foi o velório mais animado e engraçado que se tem notícia. No arraial, sempre meio às escondidas, foi assunto para mais de cinco anos, até hoje, de vez em quando alguém comenta, relatando fato novo, até então ainda oculto, ocorrido com alguma pessoa que estava naquela noite. Dona Carola ficou na história, muito mais o seu velório, tamanho foi a confusão armada pelo senhor José Rosa.

IVAN CORRÊA
Enviado por IVAN CORRÊA em 26/02/2011
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