Prisioneiro dos tempos
Era um prisioneiro do passado. Especificamente do pretérito. Mais especificamente ainda do pretérito perfeito.
Viveu por anos preso àquele mundo improvável onde tudo já havia acontecido.
Tentou em vão várias vezes fugir de suas aflições, mas tudo que conseguiu até então foi confundir ainda mais suas percepções e exacerbar a convicção de que não há saída possível daquele fosso.
Sonhou, por vezes, com a possibilidade de viver em um mundo onde fosse senhor de suas vontades, onde pudesse transitar com desenvoltura pelos tempos verbais, sentir as brisas que sopram no presente e quem sabe conhecer as brumas de incertezas que cobrem o futuro.
Pensou em construir frases que o levasse a outros tempos, mas inconscientemente conjugou seus verbos na danação eterna do pretérito perfeito.
Recolheu-se então a seu exílio gramatical e solitário vagou pelo seu passado.
Mas nesta língua tão rica e repleta de possibilidades, as exceções se espremem pelas frestas da regência e os caminhos se mostram planos onde antes parecia só haver pedras e precipícios, e por aquela estrada pavimentada de letras ele alcançou o pretérito mais-que-perfeito.
Chegara entusiasmado com as mudanças que a vida lhe oferecera. Conquistara um novo espaço afinal.
Era um novo e desafiador espaço.
A realidade, porém, indagava aos gritos com sua implacável mania de mostrar a verdade, se ele estaria apto para enfrentar os desafios de um mundo mais-que-perfeito.
Se não fora feliz enquanto vivera no pretérito perfeito, o que esperar de um mundo mais-que-perfeito?
Ele então entendera sua sina de prisioneiro. Não bastava apenas trocar de cela. A plenitude da vida estava na liberdade, pensara.
Começara novamente a se torturar diante de seu triste destino.
Buscara luz e encontrara apenas reflexos. Era um mundo de frases curtas onde tudo parecia ter acontecido um pouco antes de você chegar.
Tivera a terrível impressão de que estava sempre atrasado.
Chateara-se tanto com o tempo verbal em que vivia, que dissera para si mesmo que mudaria radicalmente se mais uma chance lhe fosse dada.
Assim, na primeira oportunidade, fugiu escondido numa frase que corria solta por esses mundos para o pretérito imperfeito.
Ali sim, fazia o que queria. Afinal é um mundo de imperfeições. Corria, dormia, comia, vivia da forma que pretendia. Mas ainda era passado e ainda se sentia preso.
Ele não queria mais viver como um foragido. Desejava, de toda maneira ter um futuro.
Viveria feliz lá, mas por uma ironia do destino, ao pisar distraidamente numa palavra escorregadia, foi cair justamente no futuro do pretérito, um lugar onde há a melancólica sensação de que as coisas não deram certo.
Faria amigos se outras pessoas ali vivessem e percorreria todos os tempos se lhe fosse permitido. Escreveria grandes estórias se tivesse inspiração e viveria um grande romance se encontrasse um amor.
Esta selva de expectativas e frustrações, infestada de partículas apassivadoras, que zumbem feito insetos ao redor dos verbos, sufoca com seus ciprestes e parasitas a confiança que quem ousa penetrá-la.
Morreria ali, abandonado se não tivesse o ímpeto de, mais uma vez, lutar pela sua liberdade.
Correria até encontrar uma saída, nadaria mar adentro, mergulharia águas profundas, mais uma vez fugiria.
Enquanto esgueirava-se por uma viela do subjuntivo, duvidas percorriam-lhe a mente e pensamentos aterradores pareciam dizer-lhe: – Se você tentasse se adaptar... Ou, – É possível que nunca ache uma saída...
Era imperativo continuar, ele convenceu-se, reflexivo, e como se ordenasse a si mesmo, bradou:
– Siga em frente!
Agora ele vive no presente, este mundo instantâneo e sem memória. Passam segundos e horas, passam dias e tudo parece igual. Hoje é o tédio que o consome e tenta domar seu espírito libertário.
Mas ele não se entrega. Sabe no seu íntimo que será a primeira pessoa do singular a pisar na terra dos substantivos.
Lá onde moram a liberdade e a felicidade.