30. Um concerto de órgão de tubos em vez do relicário
Ainda por cima estou de férias, por isso é melhor dizer que tive a impressão de ter estado aí para mais de duas horas no café ‘Les Tribunaux,’ em Évreux.
Podem duvidar, estão no seu direito, mas, vendo bem, nunca poderei ter estado menos de duas horas naquele café. Tomei dois cafés fortes, o primeiro com o Michel, ainda conversámos um pouco, mudei de mesa, escolhi uma mais recatada, só muito depois tomei o segundo café, bebi uma enorme garrafa de água mineral e passei a limpo três crónicas. Além de passar uma vista de olhos pelo ‘Liberation’ de hoje.
Passam das onze e meia da manhã, saio do café e tiro uma fotografia ao café.
O senhor está perdido? Se estava a senhora encontrou-me. Estava de mapa de Évreux na mão, deve ter sido por isso que vieram em meu socorro. Igreja de Saint Taurin? É mesmo aqui no largo ao lado.
Acordei cedo. Aí por umas seis horas já estava acordado, deixei-me ficar na cama por mais de uma hora. Soube bem. Combinara na véspera ir a Évreux de boleia com o Michel. Lavei-me, tomei o pequeno-almoço, pus em dia o correio electrónico e prossegui na leitura de Leonardo da Vinci.
Às oito horas, mais coisa, menos coisa, pusemo-nos a caminho por um percurso diferente do que haveremos de tomar no regresso. Na ida atravessámos campos e campos de trigo e de aveia para os animais, aldeias normandas meio adormecidas, ribeiros e florestas. Tudo ainda muito verdejante a fazer-me pensar nos meus Açores. Aliás, isto aqui é quase tão húmido como nos Açores. Vamos ver na volta o que verei: acho que o ouvi dizer se o ouvi bem quando disse que íamos voltar por Vernon. Mas não ponho as mãos no lume sobre isso. Posso não ter ouvido bem, estava concentrado a apreciar um riacho magnífico.
Não pode ser tudo mau, estava destinado para o Mário Moura da Ribeira Grande e para mais ninguém, assisto a um ensaio de órgão de tubos na igreja. Só eu e o organista. Mais nenhuma vivalma se avista ou avistará. Vou ficar por aqui. A música saída do órgão, poderosa, convincente, convidativa, enche as naves da igreja. Como muitas vezes quando estou acordado, tinha tomado dois cafés, não poderia estar a sonhar, ainda assim, admito a possibilidade de poder estar dentro de um sonho.
Não, não estou, se estava, fui acordado pelo toque de um telemóvel. O organista atendeu. O concerto parou. ‘Oui. Oui.C’est moi. Bon. D’accord.’ Desejo que acaba depressa para voltar a tocar. Afinal volta a tocar mas continua ao telemóvel. Ouve-se no intervalo, o rumor metálico de carros a passar lá fora, o chilrear de pássaros e um sino dá um toque qualquer. De resto, silêncio e os ‘oui’ do organista e ou uma nota distraída saída do órgão.
Assim, vou espreitar a igreja por dentro. Recomeçou o concerto. Reentrou em grande. Ainda eu e o organista. Fiquei por ali, sentindo-me um rei. Acabou.
Já me ia esquecendo: viera à igreja de Saint Taurin para ver ‘La chasse de Saint Taurin.’
Um relicário magnifico do século XIII. Mas, relicário de um lado, música de órgão do outro, pesado um e outra, o meu coração escolheu a música.
E nem contara com isso.
Nem tão pouco com as ‘querelles de brochet’ (peixe com farinha) que almocei pouco depois.
Elas também, postas no seu prato da balança, caíram-me melhor do que ‘La chasse de Saint Taurin.’ Que Saint Taurin tenha dó da minha alma ignorante.
Mário Moura
Évreux, 13 de Julho de 2010
(passado na Mediateca de Évreux)