Os olhares de Zé
Todos os dias, temos encontro marcado, eu de minha janela, ele, de seu telhado. Gosto de nossas conversas caladas, mas de olhares profundos. Ao olhar para ele, fico imaginando seus desejos e suas inquietações. Chamo-lhe de Zé. Não sei se ele gosta do nome que lhe dei, mas Zé, para mim, sugere intimidade e gosto de pensar que somos íntimos.
Zé é o meu mistério transcendental. Sobre ele tenho muitas curiosidades, não sei onde mora, se tem amigos, sequer sei se tem família. Um dia o convidei para entrar, partilhar comigo uma tigela de leite, mas ele, ignorando meu convite, nem ao menos passou do telhado do vizinho para o meu. Penso que Zé está feliz com nossa relação sem muita proximidade. Tentei compreender seus motivos mesmo sem conhecê-los e prometi a mim mesma que nunca mais repetiria o convite. Afinal, para que a convivência, se somos felizes assim?
Certo dia, abri a janela e Zé estava acompanhado, era delicada sua amiga, e tinha olhos tão encantadores quanto os dele. Confesso que fiquei enciumada. Não gosto da ideia de dividir os olhares de Zé com outros olhares, eu os quero só para mim. Talvez ele a tenha levado ao nosso encontro para me fazer entender que em nossa relação as algemas são objetos abstratos, como pinturas surrealistas, não precisam de compreensão, só de sentimento, são objetos vagos, distantes. O nosso compromisso não exige castrações, nem votos de fidelidade. Somos livres para procurar outros olhares em outras janelas ou telhados, mas nos sentimos bem um na companhia do olhar do outro.
Quando Zé por algum motivo que desconheço desaparece, um grande vazio toma conta de meus olhos e a solidão toma seu lugar. Então, penso na possibilidade de ir em busca de outro Zé. Nunca tive animais em casa, sempre achei que eles exigiriam um tempo que eu não teria para lhes dedicar, mas se um dia decidir atender aos meus apelos, quero um gato. Gosto do olhar misterioso dos gatos, eles vêm acompanhados de dúvidas, mas também de afirmações. Os gatos conversam com os olhos, nos saúdam, nos intimidam, nos suplicam, fazem sugestões ou nos dão ordens, e tudo a partir de uma relação inteira e plena de liberdade que é construída com um simples olhar.
Durante meus momentos com Zé descobri três qualidades nos gatos, as quais por eles me fizeram ter grande admiração: são independentes, livres e sinceros. Zé não precisou aceitar meu leite para saciar sua fome e sede, é independente demais para comer em minhas mãos; suas patinhas vão e vêm saboreando uma liberdade invejável, Zé vai aonde quer, sem dar satisfações a quem quer que seja de suas andanças, é livre para saltar, correr ou dormir no telhado que lhe parecer mais confortável e sem ter que dividir o aluguel; a sinceridade de meu amigo é o que mais lhe garante minha admiração, ele não precisa de máscaras para disfarçar seu mau humor, quando não está disposto a conversas, vira-se para o outro lado e, simplesmente, dá-me as costas. Não o odeio por isso, ao contrário, essa para mim, é a sua maior qualidade.
Conversando outro dia com um amigo que tem em sua casa alguns “Zés”, confirmei minhas suposições, os gatos são de fato independentes, livres e sinceros. Eles vêm e vão sem nos deixar o peso da responsabilidade sobre suas vidas. Quando se aproximam não devolvem favores, não precisam de nossas mãos para alimentá-los, só para as carícias. Deveríamos ser como gatos, não nos aproximarmos do outro só para saciar sede e fome; tínhamos que copiar sua liberdade, mas demonstrar que nos sentimos aprisionados por olhares e, principalmente, deveríamos ser sinceros e só trocar olhares com quem nos desperta o desejo do olhar atento, caso contrário, o olhar trocado será descartado, sem que ao menos tenhamos tempo de descobrir seus mistérios.
Pelo menos uma das qualidades de Zé já consegui trazer para mim, a sinceridade. Zé e eu somos sinceros, só trocamos olhares quando estamos dispostos à troca. Se não for assim, fecho minha janela e ele abandona seu telhado.