PERUADA ENJOADINHA
No Brasil, quem não é poeta, potencialmente já nasceu um parlamentar. Para ser mais claro: todo gajo brasileiro gosta de dar palpites e inventar soluções para as coisas as mais mirabolantes possíveis. Todo mundo, aqui, neste paraíso terreal, apresenta peruadas ou palpites para todos os casos e males. E parlamentar, então, este tem é língua de fogo e do mesmo lugar não sai.
É por isso que também vou assinalar, hoje e aqui, esta minha peruada, peruada bem enjoadinha – diga-se, com franqueza –, mas sempre um palpite para o embornal dos que estão se coçando, por aí, a amassar seus ternos bem engomados.
De Cabral a Lula, contudo, no caso da política de habitação, com raríssimas passagens positivas, quando se tentou minorar a problemática da moradia popular, ainda tudo é uma lástima. A pobreza não mora; ela apenas se esconde.
Resultado: pobres moram dentro de rios, de charcos e se quedam debaixo de pontes e viadutos, enquanto ricos vão residir onde bem desejam. E ainda, por cima, fazem poleiros das nossas encostas que deem para vistas lindíssimas, só as mais encantadoras e aprazíveis. Óbvio, porque aos ricos é que lhes cabem os melhores pedaços da Natureza.
As catástrofes naturais se sucedem (¹) por conta da desarrumação e anarquia da distribuição dos casarios. Ninguém está nem aí com o disciplinamento e fica tudo como antes, sem que as ditas “autoridades competentes” tomem medidas consistentes, sérias, mesmo antipáticas e duradouras.
Quando muito, para justificar a presença nos cargos, só medidas paliativas. E para os potentados, pior ainda; estes casam, batizam, fazem barba e bigode. Gente da grana ocupa os filés e paraísos naturais: ilhas, encostas, praias lindas, reservas florestais. Dizem que na Amazônia já há gringos com hotéis flutuantes sobre o fantástico Amazonas. Será?
Capitalistas privatizam praias, compram regiões inteiras das mais aprazíveis serras, fazem o diabo a quatro. Ora, todos os símios da mata, macacos me engulam com isso!... Ricos, sim, é que têm que ser orientados, pois a cabeça só pensa no vil metal. E o disciplinamento para o governo deles deve ser até mais rigoroso que o dos pobres. Botem suas mansões só até aqui, neste ponto demarcado, seus filhos de..., não desgracem a Natureza!
AUTORIDADES COMPETENTES, se as houvesse, por aqui, elas teriam mais é que agir e, como diz o próprio povo, agir “de com força”. Um desabamento aqui, outro ali, aquele acolá. De carreirinha, e bem recentes, vieram os sinistros do Rio, de Niterói e agora as não menos lamentáveis tragédias, horrendas, meu Deus, das cidades fluminenses da região serrana (²), cuja Serra dos Órgãos José de Alencar cantou belamente em seu romance “O guarani”. E a Sampa, de Oswald de Andrade, também submersa no Tietê e no rio Pinheiros?
Urbanistas, paisagistas, arquitetos, sociólogos e ecologistas, secretarias do meio ambiente, ministérios, gente de todos os vieses, todos unidos desabam a língua contra as ocupações indevidas, em locais que não dão a mínima condição de moradia. Porém as coisas vão acontecendo, sempre, e do mesmo jeito. Pô, então não tem governo! Bananas no poder político.
O êxodo rural, que ainda é fato, enxota do campo exércitos de homens e mulheres sem instrução alguma. Eles emigram de lá para as cidades grandes e aí montam suas “habitações” de tábuas e/ou papelões dentro de charcos, no leito dos rios secos, quase dentro de lagoas ou, então, ficam pendurados – ver morcegos – nas escarpas de um morro. E daí vai que a falta do planejamento é deplorável. O placar: inundações, desabamentos, mortes e destroços dos haveres materiais. Prejuízo incalculável, sobretudo pela perda das vidas humanas.
Isso tudo que se vê, em matéria de distribuição populacional, é lamentável e absurdo. Sem o mínino de infraestrutura para um local ser habitado, compete às nobres e inoperantes autoridades não deixar que, ali, nos lugares mais impróprios à vida humana, se estabeleçam bolsões de miséria e indigência, sem nenhuma condição mínima de segurança e higiene.
Não vou citar exemplos conhecidos, aqui mesmo, em Fortaleza, pois qualquer pessoa citadina, Brasil afora, conhece casos de promiscuidade habitacional e ocupações do solo em meios inteiramente inadequados à vida dos habitantes.
Mas sempre lhes dou só um caso: em Recife, muitas anos atrás, uma alma governante construiu casas humanizadas e decentes para moradores ribeirinhos do rio Capibaribe, nos bairros de Água Fria/Campina do Barreto. Nada estou a inventar, foi um fato real. Vi e tomei ciência do desdobramento do “bafulê” (³).
Só que, em pouco tempo, a imensa maioria dos beneficiados vendeu suas casinhas asseadas e a massa do povaréu, com filhos e tudo, voltou para a beira da lama, ao longo do grande rio que borda a cidade do Recife. Faltou autoridade! Digo, e por isso meu palpite, aqui, certamente fica enjoadinho.
Que o gerente do poder público tomasse o imóvel do comprador explorador e punisse a família vendilhona com a volta para o local humanizado. Ah, mas esta medida é draconiana, antipática, isto cheira a socialismo – vai-me dizer um gajo dali. Sim, é daí, cara lisa? Vai deixar que mais tragédias e mortíferos dramas desfilem como as misses nas passarelas?
Oh, meu coração está grosso, hoje, e esta crônica está mesmo um porre. E vocês acham que, vendo pela tevê tantos e incalculáveis dramas, poderia ser de modo variado e ameno? Meus olhos choram, mas a alma sangra com os acontecimentos das cidades serranas do Estado do Rio de Janeiro. E sou mole, feito papa. Vejo tudo, e tudo aquilo me dói... Ora doer pacas! Dói-me, pra valer, é mesmo Áfricas de rinocerontes!
Por hoje, aff!... Este meu arremedo de escrita vai ficar inconcluso. Meu coração anda grosso com as cenas da tevê. Mortes, destroços de pedaços e logradouros históricos! Tantas vidas ceifadas, e muitas em flor, que se foram na avalanche das enxurradas e sob os escombros. Daí porque a minha peruada, isto é, este palpite infeliz, como vocês queiram, há de ter saído assim: prato desenxabido. Texto enjoadinho pacas, não, rinocerontes!
Com ditadura jamais, contudo o povo é que tem razão: para gerir um país tem que ser “de com força”, e com maciez na mão. Ou seja, dizendo e fazendo, de fato, o que de melhor for para as maiorias, para, enfim, não dar em tantos acontecimentos funestos.
Fort., 15/01/2011.
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(¹) As catástrofes mais recentes, ocasionadas por fortes temporais, incluindo, aí, trombas d’água e tempestades, aconteceram em Santa Catarina (2008), Angra dos Reis e Niterói (RJ), em 2010, e agora, em 2011, nas cidades serranas do Rio de Janeiro, principalmente em Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis (maiores perdas humanas e materiais); ainda com menos intensidade em Areal, Bom Jardim, São José do Vale do Rio Preto e Sumidouro (RJ). Vale registrar que as tragédias todas – em pauta – ocorrem em virtude da má utilização do solo, com a construção de habitações nas chamadas “áreas de risco”, sobretudo em regiões ribeirinhas e nas encostas de morros. Outros estados, recentemente, também foram atingidos: São Paulo (bairros paulistanos, Franco da Rocha, Carapicuíba, entre inúmeras cidades, com frequência), além de Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, Piauí, Pernambuco e Alagoas (junho, 2010).
(²) SINOPSE DE ALGUMAS CATÁSTROFES:
- 2008, dezembro. Tempestades em Santa Catarina atingiram 14 cidades e deixaram 54 mil desabrigados: 133 mortos.
- 2010, janeiro, na virada do ano. Deslizamento de encosta na praia do Bananal, em Angra dos Reis (RJ): 138 mortos.
- 2010, abril. Destruição de favela sobre lixão do Morro do Bumba, em Niterói (RJ), um marco do descaso: 256 mortos.
- 2011, (janeiro). A ONU classifica a tragédia da região serrana do Rio como uma das dez piores do mundo: 630 mortos (até o final da noite de domingo, 16, segundo dados da internet e da imprensa).
“A chuva era prevista, mas não houve prevenção, fiscalização nas ocupações das encostas nem planos de contingência. O resultado de tanto descaso foi a maior catástrofe da História do Brasil.”
“Resgatei o braço de uma criança” (fala de Luiz Otávio de Souza, 39 anos, contador).
“Responsabilidade compartilhada: municipal, estadual e federal”
[FONTE: Rev. ISTOÉ, Nº 2149, Francisco Alves Filho, Wilson Aquino, Rafael Teixeira e Fabiana Guedes, 15/19 jan., 2011, pp. 42-53]
(³) “Bafulê”. Neologismo muito usado pelo comunicador de rádio e tevê João Inácio Júnior, em Fortaleza (CE), significando anarquia, bagunça, confusão, desordem, rebuliço; esculhambação (chulo).