A MORTE CERTA
POR CARLOS SENA
Leio sobre muitas coisas e escrevo sobre outras tantas. Confesso que nunca falei da morte e o que li foi muito pouco, talvez porque nossa cultura sempre tenha nos colocado essa parte da vida como se da vida não fosse. Nada mais da vida do que a morte. O primeiro ponto dessa assertiva é que desde que o homem é homem na terra, ninguém ficou “pra semente”.
Esta é a contradição da vida. Ninguém se engana ao ponto de se achar imortal, exceto os da academia de letras, mas essa imortalidade é simbólica, não entra neste contexto. Contudo, sabendo que morrerá um dia o homem não deixa de amar a vida e isto, no meu entender, é uma superação estruturada no humano; nesta maravilhosa aventura que é viver com quem amamos; nesta conjugação de conviver com quem se ama e com quem nem se ama tanto e até mesmo com quem chegamos a odiar.
Não compreendo a vida sem a morte, embora esta em algum momento possa ser compreendida sem a vida – posto que todos os viventes tenham dentro de si conceitos de morte no viés da religião ou fora dela, como os agnósticos. O ser humano tem a tendência natural para não se encontrar com a sua morte. Contudo, a vida em sua progressão material e espiritual vai alternando os conceitos gradativamente no ritmo da idade. Quando se é jovem, há dentro de nós uma ilusão de que a morte esteja mais perto dos idosos, dos anciãos, dos terceiridadistas. Contudo, aos poucos a dura realidade nos bate a porta e então é que começa o processo de consciência propriamente dita. Temos que ser práticos: se desde que o homem surgiu na terra que ele morre, não podemos ter em nós essa ilusão de eternidade. Como a morte de cada um é a grande certeza que temos na vida, por que não compreender a vida na relação direta com a morte? Há pessoas que até batem na boca três vezes como que isolando a morte; como se a existência fosse como um rio caudaloso que a margem direita fosse a vida e a esquerda fosse a morte. Nessa metáfora prefiro a vida como sendo o leito do rio com suas águas. Nelas, nosso barco tem que estar seguro o mais que pudermos, porque chegará um dia em que águas tormentosas, abismos, cachoeiras, poderão nos surpreender e nos levar a morte.
Pensar na morte não significa pensamento aziago. Há pessoas que compram até o caixão ou fazem consórcio com funerárias. Certamente que os jovens não fazem isto, talvez pela lógica imanente de que a morte seja o aposento reservado para os velhos, como dissemos. Evidente que procurar colocar a morte na vida de cada um como uma certeza absoluta não significa deixar de ser feliz. Pelo contrário. Quando se tem a nítida compreensão da vida em sua transitoriedade, com certeza as possibilidades de ser feliz aumentarão. Passa-se, não raro, a viver cada dia como se fosse o último. Afinal, Jesus já dizia, “não te preocupes com o dia de amanhã, homem de pouca fé”...
Nesse emaranhado de conceitos complexos, viver se redefine com o tempo e com as diversas idades que colecionamos. Neste sentido, boa parte das pessoas, com o amadurecimento, adquire novas práticas de convivência sociais. Talvez porque ao saírem da juventude física, paulatinamente se descobre que o espírito não envelhece. Muitos envilecem porque cabelos brancos não significam honradez nem valores morais estruturados. Dito diferente, imbecis envelhecem também e graças a Deus.
Preocupa-me mais o que fica no meio da existência. Entendo essa fase como a de maior dificuldade, pois nela se instalam aos poucos as mazelas da idade: artrite, bursite, memória fraca, rugas, cabelos brancos, isolamento social, abandonos de pais pelos filhos, diabetes, pressão alta, arteriosclerose, etc. Esse “meio da existência” é o início da instalação do quando da pior doença da vida: ENVELHECIMENTO. É quando nossa consciência fica sendo cobrada pelo tempo que, quando jovens nos deu tudo e agora começa a tomar bem de mansinho. Não seria essa fase uma lição subliminar para que nos preparemos para a morte? Claro que pouco se pode fazer em termos de preparação para a morte, mas a gente tem que acreditar que isto seja possível. Senão a gente morrerá como peru, de véspera.
O antídoto maior da morte enquanto vida é ser feliz. Quem é feliz morre como um passarinho, porque a felicidade é um sentimento que dificilmente alcança quem vê a vida na lógica das margens do rio citada anteriormente.
“Quero-te morte no limite da vida,
Pela guarida do ser liberto que conduz.
Não quero treva,
Mas que escrevas na lápide
“aqui jaz quem de amores viveu
E da escuridão só soube ser a luz.”...
Às vezes me pego pensando sobre a minha morte. Sobre as pessoas que irão me ver. Sobre os comentários que farão diante de mim. Sobre que dia irei morrer. Sobre qual doença me levará ou se morrerei de susto, de bala ou vício. Se pudesse morreria de vício. Vício de irromper coma a moral estabelecida; de gostar do que é imoral ilegal e engorda, como na canção de Roberto. Vício de amar sob qualquer forma, pela lógica pouco ortodoxa de que qualquer forma de amar vale a pena. Neste sentido, com licença Manuel Bandeira, a alma jamais será pequena. E, em não sendo pequena, certamente será grande para que o céu não tenha porta do mesmo tamanho e me faça retornar para a vida. Diferente da mocinha que se “perde”, vira puta e há quem diga que ela “caiu na vida”.
Viver talvez seja isto. Talvez não. Pelo sim e pelo não, a alternativa é viver sem senão. Sendo feliz e não sentindo que a idade chega e se ela chegar, abramos as portas, mandemos que ela entre, sente-se, tome água e decida o que vai fazer de nós.