Legado

“Sai daqui menino! Você vai se queimar! Vai lá com sua mãe!” Voltava ele, de novo, para a cozinha. Onde era repelido com a devida exortação do perigo do fogão e dos talheres afiados. Ficavam aqueles olhinhos cheios de existência no meio dos dois. Observando o pai meio endiabrado tomando conhaque, cantando junto com o som que tocava o último sucesso do grupo de pagode acústico universitário, revelação da semana, e chuçando a carne com seu longo e gasto garfo para churrasco e a mãe no dedicado preparo do acompanhamento daquela refeição. Ficou um tempo olhando, ensaiou ir de novo em direção ao pai, mas desistiu. Entrou n o seu quarto para pegar algum brinquedo e ver se não perturbava ninguém naquele raro momento de reunião familiar. Ficou algum tempo jogando os brinquedos para fora da caixa e tornando a colocá-los de volta. Depois ligou a TV e o vídeo-game. Apertava os botões aleatoriamente. Os golpes que saiam daqueles espasmos conseguiam hora ou outra acertar algum oponente de algoritmo mais incauto, mas invariavelmente era uma derrota atrás da outra. Ouviu seu pai chamá-lo lá fora e saiu todo feliz.

Foi ao encontro daquele senhor de departamento que preferia morrer a sair de sua confortável rotina. Meio calvo, com o nariz eternamente avermelhado, com uma camiseta que mal o cabia, suando intensamente.

Sentia–se num instante feliz. Chamara o filho, pois arrependera de ficar o rechaçando o tempo todo. Deu um longo trago, já não sentia o queimar do álcool nessa altura do campeonato. Parara com as fermentadas. Agora só destiladas, sob a alegação de que aquelas lhes davam gases. Repousou o copo na mesa e foi atender o menino.

- E ai rapaizão do papai?

- Pai? Tartaruga tem pêlo?

Assustava com aquelas perguntas impertinentes. Ficava assustado ao pensar que dentro daquele craniozinho havia pensamentos, idéias... Mas era solícito ao menino. Retomava o bom senso e sempre respondia da melhor maneira possível.

- Não tem filho. Por...

O menino o interpelou todo feliz:

- Então eu quero uma tartaruga como bichinho de estimação!

“Bichinho de estimação? Agora sim! Essa é nova!” Pensou.

- Mas porque você quer uma tartaruga? Um cachorrinho não seria melhor? Questionou abismado com a excentricidade do menino. Preocupado com mudanças da rotina, da normalidade!

- É que o médico falou que não posso ter animais que têm pêlo. Tenho asma!

O pai nem mesmo sabia que o filho tinha ido ao médico naquela semana! Malditas novidades!

- Vem cá filho. Chega perto. Quando o papai era criança. Ele tinha um cachorrinho, bem peludo...

Começou a fazer o que mais gostava. Começou a contar sobre o cãozinho Chulinho, sobre a descoberta que tinha asma também, dos cuidados que deveria tomar. Aproveitou para falar que o menino deveria estudar para ser alguém, que deveria tomar cuidado com as mulheres, que deveria ser honrado....

Sem perceberem, no final da conversa, quando a boca nervosa do pai cessara por falta de assunto, estavam os dois de cabeças coladas, testa com testa. O filho diz:

- Não queria que me passasse esse negócio pai!

Ele perturba-se. Diz que vai ao banheiro tirar água do joelho. E sai meio sem graça.

O menino, olhando furtivamente para os olhos que supostamente o vigiavam, pega o copo e dá um gole. Sente um ardido descer no seu esôfago. Este é só o inicio de sua da vida!