Acontece...




Acontece. Não é toda hora, nem todo dia. Nem mesmo toda semana ou mês. Mas acontece e sei, sempre acontecerá.


Um domingo chuvoso daqueles em que a chuva cai de repente e ameaça nem mesmo parar. Quase um temporal. E eu tinha que sair de casa, início do Ciclo de Natal. A Centenária Corporação Musical Euterpe Operária iria se apresentar na Igreja do Rosário. Iria? Eu nem mesmo tinha certeza disso, mas tinha que estar lá para tomar a decisão. Ou ser informada da decisão que outros poderiam ter tomado. Como chegar lá? Pegar meu Fiesta dourado nem pensar. Sem possibilidade de estacionamento. Um táxi? Quem não iria gostar seria o taxista: minha casa fica a duas quadras da Igreja. No entanto sair na chuva era sem cabimento. Então, como um Milagre de Natal, a chuva quase parou de repente e eu fui de sombrinha aberta no chuvisqueiro. E sapatos velhos.

Foi um sucesso? Sim e não. Quando entrei pela porta lateral da Igreja a Missa estava acabando e mesmo antes que acabasse, aproveitando o estiamento, foi um sai que sai apressado que quase fui junto. Poucos entraram depois disso e poucos que já estavam lá, ficaram. Todos assentados, uns três quartos de bancos ocupados. E a Euterpe se apresentou. Aí sim, magnífico. Enquanto ouvia as músicas eu me desligava das tormentas da vida. E foi então que tudo aconteceu. Mais uma vez.

Entre uma canção e outra olhei para os bancos do outro lado de onde eu estava. Foi um segundo, talvez uma fração o tempo em que me enganei. Ele estava lá, participando do Concerto. Foi o suficiente. Meu coração doeu, bateu forte. Será que para dessa vez, pensei. Para nada, eu mesma me respondi.  Ou foi a intermitente luz azulada que iluminava tudo quem respondeu?  Sei não. Nesses casos assim nunca dá para ter certeza de nada.

A imagem que minhas retinas reconheceram foi a de meu irmão. Minhas retinas costumam pregar-me peças, mas meu cérebro esperto diz logo: Epa, espera aí, não confundam as coisas, não é ele. Nunca mais poderia ser ele porque está morto. Assim, quase de repente, ele se foi. Dois anos e meio e ele já chegou para o Natal. Vai ser difícil mandá-lo embora agora.

É claro, não precisei que se virasse para ter certeza de que não era ele. Nem sei se aquele que lá estava se virou, pois desviei o olhar imediatamente. Mas a lembrança estava na mente: os cabelos grisalhos, a camiseta mal ajambrada (era ele mesmo quem as lavava) e de bermudas, santo Deus, e velhos tênis. Era assim que ele era. Mas tão bonito, tão bonito! 
 
Fiquei pensando em como as mulheres gostavam dele e no quanto ele as amou. Todas. Garantiu-me: era uma de cada vez, fidelidade era fundamental. Fiquei pensando em como ele podia ter tido uma vida diferente. E isso dói mais é no Natal. Porque ele amava o Natal. Fazia questão de estar presente e nesse dia ele vinha tão bonito, arrumado, feliz. Os filhos  vinham se encontrar com ele na casa da avó. E ele se deliciava sem colocar na boca uma só gota de álcool, se sentia feliz vendo toda família reunida. Dava um pouco de trabalho – tínhamos que buscá-lo e levá-lo até ao Sítio onde ele se escondia. Tínhamos que fazer isso porque sempre chove no Natal. Desde que ele se foi não comemoramos mais o Natal. Esse ano será diferente. Reuniremos os que estão por aqui ou por perto. Outros estão longe e não poderão vir. E outros estão mais longe ainda, além de tudo o que é humano. Ah, como eu queria que não chovesse no Natal e pudéssemos esquecer os que nunca mais voltarão!