ACHADOS E PERDIDOS
De manhã, quando abriu a porta lá estava um belo e grande Husky amarelo, sujo, esfaimado, mal tratado, mas belíssimo e legítimo. Aqueles grandes olhos azuis clamavam por carinho e imaginem: uma casa com quatro crianças era justamente o que ele precisava!
Foi um corre-corre. Um tratou de arranjar vasilha para água, outro para a comida. Ele cheirou e não quis comer. Acharam que não estava acostumado com feijão! Deram-lhe pão amolecido no leite e aí ele comeu tudo. Que alegria a das crianças!
Fizeram mil e um projetos para arrumar-lhe casinha. Não havia espaço na área de serviço para um bicho daquele tamanho. Tanto fizeram, que o tanquinho foi parar ao relento e o cachorro afinal teve um lugarzinho para deitar, com coberta e tudo, um pedaço de cortina velha com o qual as meninas brincavam de casinha.
Há tempos estava prometido que teriam um outro cachorrinho, desde que certa mistura de vira-lata com basset, preto e tão safado que se chamava Pestinha, havia fugido para a rua e nunca mais tinha voltado. A menorzinha até chorara de saudade dele. Agora imaginem chegar um cachorro daquele porte, puro e lindo. Foi demais!
O que mais impressionava eram aqueles olhos azuis, mais charmosos que qualquer Frank Sinatra, pode crer!
Saíram para a escola e voltaram correndo para um último adeusinho. Imploraram à Mamãe que cuidasse dele, que não deixasse fugir. A mamãe prometeu até lhe dar um banho! Puseram até um nome nele lembrando a pátria de origem: Igor. Belo nome.
À noite, já todos acomodados, passados aqueles momentos excitantes do primeiro encontro, a Mamãe lembrou às crianças que aquele cão devia ter um dono e quem sabe até alguma criancinha estaria chorando pela ausência dele, quem sabe?
Foi um banho frio, um silêncio geral, uma troca de olhares aflitos, espantados e tristes. Foi preciso muita fala, muita explicação para afinal convencer a todos que deviam por dever, pelo menos, colocar algum aviso em algum lugar avisando do achado, para ver se aparecia o dono. Concordaram, mas estipularam prazo: o aviso ficaria só dois dias na sorveteria, e só lá, nada de espalhar aviso pelo bairro inteiro durante um tempão. Nada disso.
No outro dia, diante do computador, os quatro irmãos foram “bolar” um aviso. O mais velho escrevia, os outros davam sugestões:
- não podiam dizer a raça, se não qualquer um diria que o cão era dele.
- não podiam dar o endereço, pelo mesmo motivo. O telefone escolhido foi o da Vovó, porque ela saía de casa, mas a Bisavó não saía nunca! Teriam que ensinar a Bisa o que dizer e o que não podia nem mencionar.
- o aviso teria que ser bem esperto, para realmente fazer aparecer o verdadeiro dono, ou afastá-lo para sempre, pensou o segundo moleque, mas nada disse.
- Vamos por um desenho de cachorro para enfeitar, mano, fica mais legal.
Procuraram no programa e encontraram várias espécies. Não conseguiam escolher. O desenho sugeria a raça do cachorro; afinal, depois de um tempão, escolheram um desenho meio indefinido. Levou outro tanto para escolher o tipo de letra, outro para a disposição do texto e afinal começaram as sugestões efetivas:
Achamos um cachorro! Foi encontrado ontem, às 9 h da manhã. Só podemos dizer que é de raça e grande tamanho. (tamanho não, seu burro, é porte). O.K. grande porte. Você vai ter que falar direitinho como ele é, senão a gente não entrega o seu cão. Isso não quer dizer que temos vários cães. É um só, porque não assaltamos um canil. Aceitamos recompensa que dê para dividir por quatro, sem deixar resto. Não é que estamos vendendo ele, mas um dinheirinho até ajuda. Quando telefonar, vai ter que dar o endereço, pois vamos ver se sua casa é boa mesmo pra ele. Se estiver cansado do cachorro, avise também porque estamos querendo ficar com ele. Por favor, não apareça logo, ou não apareça nunca. As meninas já se apegaram de amores por ele. Nós perdemos nosso cãozinho e se você encontrá-lo, pode ficar com ele, é feio, mas muito inteligente. Até já combinamos quem vai limpar a sujeira dele, cada dia é a vez de um de nós. Ele come muito, nossa! Você tem que dizer também do que ele não gosta de comer, cheira, cheira e não come. Tem que adivinhar o que ele devora num instantinho. O telefone é (011) 646-9654. Fala com a Bisavó, mas fala alto que ela não escuta direito.
- Pra que você pôs esse DDD? Está errado.
- E você acha que vou por o certo? Assim eles pensam que o cachorro está muito longe para ir buscar. Legal, né?
- Mãe, vem ver se ficou bom.
- O que é isso? Uma declaração de amor ou um tratado do cão perdido? Um aviso tem que ser claro e objetivo. Por exemplo:
Encontramos um cão de raça e grande porte. Telefone para 646-9654.
- Mas, Mamãe, e se alguém telefonar?
- Mas a intenção não é entregar o cachorro?
Nãããão! Foi a voz de quatro pessoinhas.
- E para que, então, o aviso?
- Ah, Mãe, é só para ninguém dizer que não tentamos!
O cachorro não durou dois dias nessa casa, o portão não fechava direito, fugiu durante a noite e não voltou mais. A pequenina chorou demais, a outra menina ficou calada, amargurando sua tristeza. O mais velho consternado não sabia o que dizer e o segundo saiu pelo bairro procurando por ele. Depois de uns dias, quem aparece? O Pestinha, sim. Depois de cinco meses perambulando ninguém sabe por onde, apareceu gordo como um porco cheio de sujeira e está lá até hoje. Para alegria de todos.
Ah! Ia me esquecendo. O fim da história é outro. O famoso Husky Siberiano foi parar na casa da babá das meninas, quase do lado oposto do bairro. Está lá até hoje. É bem tratado e quando as crianças vão lá fazem a maior festa para ele. Ainda o chamam de Igor.
O verdadeiro dono nunca apareceu. O cartaz de “Encontrou-se...” nunca foi posto na sorveteria, nem deu tempo!
E completo agora, anos depois, o fim do Pestinha. As crianças já eram moças e tiveram que se mudar para um apartamento. O Pestinha veio ficar comigo que moro em casa térrea com quintal. Durou mais quatro anos e morreu de falência dos órgãos por causa da idade, segundo disse o veterinário que o atendeu. Morreu com 15 anos!
Agora, esta crônica chegou ao fim mesmo.