Revelações no Supermercado

Outro dia eu estava no supermercado quando me deparei com uma velha conhecida a quem não via há muito, muito tempo. Olhei para ela. Causou-me estranheza o que vi, então olhei novamente, com um olhar insistente. Não satisfeita, continuei olhando e a mesma visão foi se repetindo por várias vezes. Ainda não crente do que via, aproximei-me. Ela não me dirigiu um único olhar, talvez porque estivesse muito preocupada em escolher o mamão mais maduro, ou porque simplesmente eu não lhe trazia nenhuma recordação, como disse, era apenas uma conhecida. Após alguns segundos, ainda inquieta, mantinha dividido meu olhar entre as bananas e aquela mulher. Sua escolha finalmente acabou e com alguns mamões postos em uma sacola, ela deixou o corredor e eu a acompanhei com o olhar.

Por alguns minutos a imagem daquela mulher perseguiu-me. Busquei compreender minha inusitada reação e entre uma escolha e outra, um sentimento de indignação causado pelo aumento da carne ou uma ligeira euforia trazida pelos produtos em oferta na semana, fui entendendo que não era exatamente ela que eu via quando a mirava, na verdade aquela imagem era tão somente um portal que por um momento me tirou daquele frenético ambiente e me levou de volta a um passado que apesar de recente, por vezes me parece imensamente distante.

As lembranças foram surgindo, dançando num ir e vir a um ritmo tão intenso quanto o do movimento do supermercado em dias de promoção. Lembrei-me da escola. Escola religiosa, de olhos atentos aos gestos mais ousados dos meninos e aos consentimentos das meninas. As freiras não saiam dos corredores com seus hábitos escuros que mais pareciam armaduras, sempre prontos a defendê-las dos perigos mundanos. Meu primeiro namorado estudou também nessa escola, aliás, foi lá que nos conhecemos, claro que não namorávamos no colégio, mas quando saíamos....

Não namoramos durante muito tempo. Eu não era do tipo de garota que se sentia namorada de alguém, gostava da sensação de liberdade e qualquer coisa que me afastasse dela, era logo por mim afastada. Ah! Eu gostava de viajar, de dançar, de paquerar, de conhecer pessoas diferentes que me apresentassem mundos diferentes. E por falar em viagens, certo dia resolvi que iria ao nordeste, mais precisamente, à cidade de Fortaleza. Tudo bem, se não fosse pelo fato de estar com 19 anos, nunca ter saído do estado, não conhecer ninguém em Fortaleza, ter pouco mais que o dinheiro da passagem, e ter resolvido ir sozinha; todos esses motivos fariam grande parte dos leitores desistir, mas não a mim. A aventura me entusiasmava, quase chegava a ouvir o chamado do desconhecido. É verdade que cheguei a ficar um pouco apreensiva quando entrei no ônibus, olhei para os lados no intuito de encontrar qualquer expressão que me deixasse a impressão, ainda que vaga, de um olhar confiante, mas apenas consegui ver faces indiferentes. Bom, mas eu nunca fui de desistir, respirei fundo e procurei minha poltrona. Apesar do receio do que encontraria pela frente, jamais desistiria porque aquela sensação de liberdade era muito mais forte que o medo.

Aquela foi a primeira de muitas viagens que passeavam nos meus pensamentos, fazendo renascer sentimentos enterrados pelas circunstâncias e distanciados pelo tempo. Lembrei-me de como eu gostava de dançar. A dança era tão presente na minha vida como hoje são as palavras. Havia uma festa todos os domingos na sede de um clube que ficava em meu bairro. Eu, claro, ia a todas, ainda que tivesse de fugir pela janela do meu quarto quando era impedida de sair de casa por meus pais. Nessas horas eu também sentia medo, porém, o medo não era maior que o desejo de ser livre.

Lembro-me que contrário à maioria das meninas na época, eu não queria ser modelo, pensava em ser jornalista, mas meu destino guiou-me para as palavras, e formei-me em Letras. Não me arrependo, ao contrário, sinto que fui levada para o caminho certo, não porque ele me transmita alguma segurança, mas porque o caminho das palavras está sempre livre. E por falar em palavras, lembrei-me que elas sempre foram a minha melhor companhia, não importava se eram fruto de minha fértil imaginação ou se brotavam em terras distantes. Meu pai, apesar de só ter freqüentado a escola nas séries iniciais era um homem de gosto refinado para a leitura. Quando mobiliou nossa casa reservou um espaço na sala para colocar uma estante cheia de livros, lembro de alguns Atlas, havia também uma enciclopédia que continha a biografia de homens considerados marcos na nossa história, os romances ficavam na segunda prateleira, deles guardo lembrança especial, principalmente, porque entre eles estavam cinco livros de capas vermelhas que me chamavam a atenção pela cor. Eram romances de Machado de Assis. Tinha apenas quatorze anos quando o conheci, certa vez passeava o dedo pela estante e como não estava fazendo nada e desejava que as horas passassem mais rápido, abri um desses livros, folheei, ensaiei uma primeira leitura, mas aquelas palavras pareciam-me estranhas. Ele havia errado ou coisa era cousa mesmo? Naquele dia, confesso, não consegui compreender se o narrador estava mesmo morto ou se brincava com o leitor. Foi assim o meu primeiro contato com o homem que escrevia livros que tinham capas vermelhas.

Em meio aos meus devaneios fui fazendo minhas compras e quando dei por mim já estava na fila do caixa com o carrinho repleto. Olhei para os lados e na fila ao lado lá estava ela novamente me roubando a atenção. Por que será que aquela mulher me deixava com o olhar fixo em sua direção? Só depois de alguns segundos respondi a esta pergunta. Lembrava dela porque estudava no mesmo colégio que eu, na mesma época que eu, lembro também que ela sempre ia às festas no clube, a via nas praças, na orla, nas lanchonetes, na época em que eu também freqüentava todos esses lugares. Mas, naquela época, ela não tinha aquele corpo, seus cabelos eram volumosos, brilhosos, seu olhar tinha o brilho da juventude, seu rosto não possuía aquelas rugas que anunciavam o início do fim de uma existência. Compreendi porque aquela mulher mexia tanto comigo. Devemos ter quase a mesma idade, meu olhar então se voltou para mim mesma, mirei minhas mãos e compreendi algo que a muito ouvira: as mãos de uma mulher a denunciam, então percebi que o tempo havia passado, minhas pernas já não dançam, pelo menos, não mais como antes, e o rosto, será que tenho as mesmas rugas que ela? É engraçado como não tinha me dado conta das minhas rugas até encontrar aquela mulher. Naquele momento pude sentir a efemeridade da vida, e aceitei o fato de que tudo passa e com muita velocidade, enquanto olhava para minha velha conhecida, via a mim mesma. Vi minhas rugas refletidas nas rugas dela, vi que não era mais livre através de seu olhar quase melancólico. Assisti a passagem de uma vida inteira naquele dia, da minha.

LenaCilene
Enviado por LenaCilene em 05/12/2010
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