Lembranças vazias

Olho em volta e não te encontro mais. Você entrou e saiu sem que nada saísse do lugar, os móveis ainda são os mesmos. Meu quarto continua mudo e as paredes inertes, paralisadas pela ausência de uma história. Foi tão rápido, nem pude me dar conta da explosão de sensações que eclodiu em mim quando você chegou. Foi tão rápido e hoje olho em volta, o apartamento vazio. Não te encontro mais. Mas, quanto a mim? Vazia. O meu ser também continua no mesmo lugar, tudo solitariamente igual, ou praticamente igual, percebi que você deixou algo com o qual eu não estava acostumada a conviver, que vem me perturbando a instabilidade tão desejada e que foi se alojando em minhas regiões mais abissais, tanto que mal posso encontrá-lo para expulsá-lo de uma vez e recuperar o meu vazio pleno. Você deixou a sua ausência

No dia em que você saiu, sem que nós dois soubéssemos, fizemos uma troca, você deixou saudades do que viveríamos e levou um pouco do que eu seria. Você levou as lembranças que eu teria quando folheássemos o álbum de fotografia, sentados em nossas cadeiras de embalos no jardim de nossa casa, já com as cabeças brancas e as peles enrugadas. As fotos já marcadas pelo tempo trariam de volta as noites quentes e os sorrisos despretensiosos, sorrisos sinceros eternizados em nossas memórias, reflexo do prazer que teríamos em estar um na companhia do outro. Olharíamos as paisagens distantes que serviriam de cenário para beijos, abraços e brincadeiras inocentes de dois apaixonados. Mais um pouco do álbum e nossos filhos surgiriam, ela, doce e meiga, de uma delicadeza de filha, ele, altivo e com um olhar tão sincero que até se confundiria com o seu.

Olha! Nesse dia fomos passar o fim de semana na casa de praia daqueles seus amigos que depois de algum tempo tornaram-se mais meus do que seus. Adorava aquela casa, era tudo tão rústico, tão aconchegante. Era como se, por algumas horas, eu deixasse de ser eu, deixasse de ter minhas preocupações, meus deveres, minhas contas, meu emprego e passasse a ser uma personagem que combinasse com aquela decoração. Escolhi ser uma camponesa cantada por um poeta árcade, então, incorporei a personagem, vesti meu vestido com estampa floral enquanto contemplava as flores em cima da mesa. Eu não tinha idéia de que você estava me olhando, esperando um olhar ou uma posição mais descuidada para tirar a foto. Aconteceu. Assustei-me com o gato que entrou pela janela e deixei cair o vaso pintado pela dona da casa. Que desastre! Só pude perceber meu desespero quando voltamos pra casa e você me mostrou a foto que captava sem piedade o meu olhar assombroso.

Lembra desse dia? Quantas saudades dessa viagem. Nesse dia acordamos cedo e tínhamos tudo minimamente planejado, o carro havia passado pela revisão, havíamos reservado o hotel pela internet e confirmamos a reserva com o depósito efetuado na data marcada na conta que aquela gentil atendente havia me repassado, nem um dia a mais ou a menos. Hotel de luxo. Pela primeira vez nos hospedaríamos num quarto com banheira de hidromassagem e teríamos uma piscina particular. Ah! Não via à hora de chegar e desfrutar de todas essas sutilezas que só dois anos de economia podiam pagar. Nem paramos pra descansar, oito horas revezadas no volante. Estávamos exaustos. Chegamos, e:

- Você tem certeza que é aqui?

- Claro que sim. Eu confirmei o endereço, peguei o mapa na internet, não estou louca.

- Tá, mas onde está o hotel?

- O hotel? Bom, eu ainda não sei, mas não deve ser muito distante, vamos procurar, primeiro naquela direção, se não encontrarmos nada, podemos ir na direção oposta...Ah! deve estar em algum lugar por aqui e depois um hotel daquele tamanho, não vai ser difícil encontrar. Espera.

- Ei, você aí, pode me dar uma informação, por favor, conhece o hotel ...

- Nunca ouvi falar,

- Como assim? O senhor deve estar enganado, olhe é esse aqui nessa foto.

- Me desculpe minha senhora, mas não tem nenhum hotel por aqui, ainda mais chique como esse aí.

Pronto! nossa viagem, nossas economias e nossas férias tinham acabado ali e eu havia feito toda a negociação. Estava esperando um fuzilamento ali mesmo, ao ar livre, bem ao modo ditatorial, mas você me surpreendeu, olhou-me nos olhos e disse tudo bem. Simples assim: tudo bem. Eu não entendi nada, não entendi o tudo bem, na verdade fiquei furiosa. Como tudo bem? Como assim tudo bem? Então, nossas férias não importavam pra você? Nada do que havíamos planejado fazia sentido pra você? A situação se reverteu, passei de fuzilada a fuziladora. Você ria sem parar com a minha crise infundada de histeria. Com o teu sorriso me dei conta do que estava fazendo, devolvi o “tudo bem” com o “e agora? “ Levantamos os ombros, entramos numa lanchonete e tomamos café.

Essa é especial. Nosso primeiro apartamento. Que trabalho me deu colocar tudo no lugar. Sabe, às vezes os móveis criam vida, e se alojam em lugares que fica difícil tirá-los depois de um tempo.

- Aquele sofá não pode ficar ali.

- Eu sei amor.

- Tá, então tira ele de lá.

- Ah amor!, deixa pra amanhã, eu tô muito cansado, não agüento mais carregar nada.

- Eu sei, mas se ficar pra amanhã. Nunca mais ele sai de lá. Amor? Amor? Tá ouvindo, mas que droga, você dormiu.

Eu não podia esperar até o outro dia, arrastei o sofá que parecia ter chumbo no lugar da madeira, durou 40 longos minutos a minha batalha, porque a cada passo dado tinha que parar pra recuperar o fôlego e as forças também. No outro dia, você levantou, foi até à sala, abriu a janela, sentou no sofá e finalmente me perguntou: E aí amor, você quer mudar o sofá de lugar agora? Achei melhor não responder.

Lembra desse natal? Aquele foi o presente mais lindo que já ganhei. Tínhamos brigado no dia anterior, por um motivo qualquer que nem me recordo mais, mas dessa briga renderam doações simultâneas de nossos presentes natalinos, quando no calor da discussão chegou um casal de pedintes batendo a nossa porta, pedindo um ajuda para a ceia.

- Ajuda? Um presente serve? Lhe asseguro que custou bem mais do que merece quem seria presenteado. Não pensei muito, peguei o presente que já estava todo embrulhado e dei para o homem que só me pedia uma esmola. Você parecia não acreditar muito no que estava acontecendo, mas, talvez porque quisesse parecer tão frio quanto eu, correu e entregou meu presente à mulher. Os dois se olharam sem entender nada, tinham ido pedir esmola e saiam presenteados. Que coisa maluca! Devem ter pensado que o espírito natalino envolvia nosso lar.

Nossa, mas como era grande aquela caixa! Fiquei o dia inteiro imaginando o que teria dentro dela. Um vestido preto longo? Não, a caixa era grande demais. Talvez um vestido e um par de sapatos. Não, você nunca me dava roupas, dizia que eu era muito imprevisível, ora gostava de seda, ora de jeans. Quem sabe um aparelho de jantar novo ou um faqueiro de prata? Um violão? Não suportava mais a curiosidade, mas não podia perguntar, imagina se eu seria a primeira a quebrar aquela interminável nuvem de silêncio que se instalara em nossa casa. Após horas tentando encontrar uma maneira bem sutil de sondar o que havia naquela caixa, sem sucesso, não pude mais suportar e fui direto ao ponto.

- Eu não sei o que tinha naquela caixa, mas francamente, você acha que vai ter alguma serventia pra aquela mulher? Que coisa mais idiota ter dado o meu presente, que com certeza só iria ficar bem em mim.

- Eu acho que vai ficar muito bem nela.

Ah! Aquela foi a gota d’água. Que insulto! O que havia sido comprado pra mim, ficaria muito bem na primeira mulher que bate à porta da minha casa? Era demais. Saí do quarto chorando, eu não era única, havia cópias de mim por aí. E você fazia questão de deixar isso bem claro.

No outro dia acordei bem cedo e saí. Resolvi que eu mesma iria me presentear. Fui ao shopping e satisfiz os meus desejos fúteis e patéticos de dondoca em crise existencial. Quando retornei você não estava em casa, melhor assim, pensei, ficaria mais tranqüila pra preparar a ceia. Eu sabia que a atmosfera natalina nos envolveria e logo nossas taças estariam cheias e entre uma taça e outra... As horas foram passando, nove, dez, onze. Já estava quase em pane. Era natal, e eu ali sem presente e sozinha. Onze e meia, você entrou e nem me notou, foi passando pro quarto, como se eu nem estivesse em casa. Eu, revestida com meu espírito competidor, liguei a televisão e fingi assistir a um filme natalino. Nada mais deprimente pra ocasião. O tempo ia correndo e a meia-noite se aproximando. Confesso que estava muito inquieta, minha vontade era ir ao quarto, declarar todo o meu amor e mandar o orgulho ir se danar, mas não consegui. Levantava-me de vez em quando, ia até a geladeira e enchia minha taça de vinho. Voltava a sentar em frente à televisão.

Meia-noite. Pensei: é o fim! Começava a borrar a maquiagem quando a campainha tocou, imaginei que fosse algum amigo ou vizinho que viesse desejar feliz natal. Sem vontade, me lavantei e fui até a porta. Não vi nada, já ia fechar a porta quando tropecei em algo, olhei pra baixo, e não acreditei no que estava vendo. Lá estava ele, um pacote igual ao que você havia dado àquela mulher que batera à porta pela manhã. Nunca perguntei se era o mesmo, me contentei em acreditar na minha fantasia, de que você teria andado o dia inteiro procurando aquele casal só pra me provar que eu era única.

Pois é, tantas lembranças que nunca teremos, tantos momentos que nunca viveremos. Só me dei conta do que havia acontecido com a minha história quando você partiu. Senti saudades de tudo que não vivemos, das viagens que nunca faremos, das brigas que nunca terão reconciliações, dos beijos mais calorosos que nunca trocaremos, das palavras que nunca serão ditas, dos almoços de domingo em família que nunca acontecerão, das fotos que nunca serão reveladas e do álbum que permanece vazio e que nunca contará a nossa história.

LenaCilene
Enviado por LenaCilene em 03/12/2010
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