Acerca do Amor e Perdão
Certa feita, perguntaram a um velho frade o que ele pensava que deveria ser feito a uma pessoa que por inúmeras vezes incorria num mesmo erro sem se dar conta de que a atitude dela acabava por machucar o coração de outros. E, o humilde frade assim respondeu:
Vou tentar responder à sua pergunta partir da minha pequena experiência como franciscano e, portanto, tendo como referência o Evangelho e as Fontes Franciscanas.
Se eu entendi bem você queria saber qual deve ser a nossa atitude para com àquelas pessoas que insistem nos seus erros por ignorância. Foi isso?
Após a resposta afirmativa do interlocutor, o frade continuou a falar:
Quanto a essas pessoas, as nossas atitudes devem ser a do perdão e a da correção fraterna. Em outras palavras, devemos perdoar e instruir.
Entendo o ser cristão como um compromisso pessoal que não posso delegar a outros, portanto, diante do mal recebido eu não devo jogar a responsabilidade das minhas ações para quem me fez o mal. Em outros termos, não importa muito o que fizeram de mim e da minha vida, mas o que eu farei a partir destas coisas, ou seja, como eu vou me construir a partir do que a vida está me oferecendo, nesta bem determinada e precisa situação. Pois, olhando para Jesus percebo que deram para ele a cruz e esta não retirou dele a liberdade de construir para si uma história de entrega e doação. Quando os seus inimigos pensaram que estavam tirando-lhe a vid, Ele tinha a plena consciência que ninguém tinha o poder de tirar a vida dele, mas ele a entregou em favor dos outros. As pessoas só podem ter sobre nós o poder que nós mesmos lhe damos.
Assim diante daquele que erra e não tem consciência do seu erro a palavra de Jesus na cruz deve ecoar em nossos corações: “Pai, perdoa-lhes. Eles não sabem o que fazem.” Contudo, ao escrever isso não quero apenas dizer que a nossa tarefa para com quem peca ou erra inconscientemente seja apenas o perdão, mas também a de instruir quem erra, pois instruir quem não sabe é um ato de misericórdia.
Sabe, as pessoas que cometem o mal inconsciente são muitas das vezes vítimas de si mesmas, pois fazem o que fazem por terem a sua consciência obscurecida. Essas pessoas com mais razão merecem o nosso perdão, pois fazem o mal sem se darem conta do que estão fazendo.
Contudo, o nosso perdão não deve converter-se em mera passividade. É um dever esclarecer a consciência obscurecida, ou seja, denunciar o mal com cordialidade, pois eles não sabem que estão agindo erroneamente. Sendo assim, a nossa denuncia deve ser realizada na liberdade e na caridade, pois estas duas atitudes impedirão que a nossa correção deixe de ser fraterna e se converta em ressentimento e mágoa. Basta olhar a atitude de Jesus diante dos fariseus; da samaritana; da mulher adultera; dos pecadores e diante de muitos outros que se encontravam à margem da sociedade por levarem uma vida fora dos padrão e,muitas vezes até, indigna. Jesus sempre aponta o erro com caridade, mas não deixa de apontar o erro e dizer, ainda que nem sempre diretamente, que a atitude do outro está errada: “vá e não peques mais”; “Dissestes a verdade... o marido que tens agora não é teu”;... Jesus denuncia o mal, mas não se deixa ressentir por este. Ele reconhece o mal que a pessoa comete, porém sabe que a pessoa é mais do que isso. A pessoa não é o que ela faz. Jesus olha o outro com um olhar fraterno. Ele sabe que veio para quem está doente, fora da saúde originária da existência humana. Ele olha para a pessoa a partir do que de fato ela é: filha de Deus.
Diante disso, posso afirmar que perdoar não é “pôr panos quentes” no mal realizado por outrem. Perdoar não é ser “cândido” ao ponto de negar a realidade do mal. Perdoar não é o mesmo que des-culpar: negar a culpa do outro. O perdão é, na realidade, uma opção pelo amor. Sendo assim, perdoar é reconhecer o mal do outro e fazer a opção de amá-lo contando com isso. Perdoar é sentir o mal e, às vezes, até chorar por este, e fazer a opção de amar aquele que comete tal ato, não apesar disso, mas contando com essa possibilidade. Perdoar é sentir o mal e fazer a opção de romper com esse ciclo dia-bólico, não perpetuando o mal recebido. Perdoar é denunciar o mal sem se deixar envolver por este. Perdoar é deixar o outro ser quem ele é, ainda que seja meu inimigo, e, contando com isso, amá-lo. Perdoar é acolher o outro tal como e onde ele está. O perdão pressupõe a liberdade e gratuidade do amor unido a transparência da verdade. Jesus nos manda amar nossos inimigos, ou seja, amar quem tomou para sempre a resolução de me odiar.
A grande dificuldade aqui está no fato de que a opção de amar é tomada na liberdade e gratuidade pelo cristão que tem a coragem (ou ousadia talvez...) de chamar o outro de irmão. Aqui não tem como terceirizar o trabalho. A pessoa mesma é colocada diante da opção de amar o outro sem esperar nada deste; sem esperar o reconhecimento da parte do outro; sem esperar que o outro algum dia lhe faça a mesma coisa. Sem parecer egoísta, a decisão de amar ensinada por Jesus Cristo implica numa decisão e adesão pessoal. Sou eu quem deve amar e isso independe do outro. Por isso, realmente, só sabe o que é o amor quem já perdoou.
Vale ressaltar que esclarecer aquele que age mal sem saber é um ato de misericórdia. Contudo, o mal, o pecado do outro, conforme ensina São Francisco em sua Regra, não deve provocar a ira em quem repreende ou corrige, pois a ira e a conturbação impede a caridade em si e nos outros. E, uma vez que quem corrige se irrita acaba por cometer um erro tão grave quanto o cometido pelo o outro. Se devemos perdoar quem erra conscientemente, qual não deve ser a nossa postura com quem erra sem saber?
Outra situação difícil é quando o outro está obstinado no erro. Neste caso, deve-se denunciar o mal com paciência; exortar que o outro seja responsável para colher às conseqüências de seus atos; na medida do possível, respeitar a liberdade do outro e rezar pela conversão deste... Rezar para que esta pessoa, tal com Santa Terezinha fazia, veja o que você está vendo. Este é um ótimo exercício de paciência e humildade que nos ensina a ter dimensão para o erro do outro. Pois, enquanto a paciência nos abre a termos dimensão para o outro, a humildade nos ensina que o erro do outro é possibilidade nossa e que se não o fazemos é por graça de Deus. Lembro as palavras de um sábio franciscano: “Quem vê, sabe o que vê, reconhece quem não vê e tem dimensão para este”.
Após proferir estas palavras, o velho frade se retirou para a sua ermida e lá se pôs a chorar porque não foi breve em suas palavras e percebeu que ainda tinha muito a aprender acerca do amor e perdão...