QUEM É O LOUCO?
- Não se preocupe, eles são tranqüilos!
Essa frase, dita por qualquer outra boca, talvez não tivesse o mesmo efeito relaxante nele, mas dita por seu pai era definitivamente um sinal de segurança, a despeito da realidade que habitava o andar de baixo.
Eles chegaram ao bairro no mês de agosto, mas o garoto não fez novos amigos até Outubro. A simples idéia de passar pelo portão e ganhar a rua surtia nele uma sensação hibrida, um misto de instinto de preservação, ansiedade, acanhamento e curiosidade.
O medo de descer as escadas e passar diante da porta do apartamento de baixo era diferente, e talvez muito menor do que aquilo que sentia ao pensar em enfrentar as aventuras de um bairro novo. Sobretudo “aquele” bairro.
Da ampla janela da sala ele podia ver a rua e imaginar o quanto seria bom fazer parte daquele bando de capitães de areia. Crianças coloridas, de traços fortes e muito marcantes, que compunham uma sinfonia de expressões eloqüentes como palavras, em suas faces. Expressões com a nobre função de compensar o parco vocabulário de suas discussões. Da mesma forma que uma sinfonia compensa, e completa, o silencio. Mas essa era uma forma de comunicação desconhecida pelo garoto.
Se levantasse os olhos apenas um pouco, podia perceber a dureza da vida do povo que morava embaixo daquela confusão de telhados. Na mesma janela, puxando a vista pra direita, via-se abrir, como um leque de veludo azul-topázio, o oceano atlântico sobre a praia de Amaralina.
O bairro cresceu a partir de um assentamento de negros libertos, ex-escravos que trabalhavam nas terras de um tal Sr. Amaral, no final do século XIX e que construíam suas casas ao longo da margem nordeste do córrego que cortava o vale. Somente duas coisas não mudaram desde então: A beleza geográfica do bairro e a marginalização de seus habitantes.
O prédio possuía três apartamentos distribuídos em três andares. O garoto morava no apartamento do meio e o prazer de ter, pela primeira vez, seu próprio quarto era inegavelmente uma faca de dois gumes, pois lhe dava a inédita sensação de domínio e de poder sobre sua privacidade. Em seu quarto eram suas as leis e invioláveis os seus segredos.
Mas a privacidade comporta a solidão e esta traz o medo. Os loucos do apartamento de baixo alimentavam esta equação.
Os Bucão eram uma família formada por duas mulheres e dois homens, todos irmãos, que tinham entre trinta e cinquenta anos. Viviam no prédio herdado dos pais e, por causa de uma estranha anomalia congênita, ficaram todos loucos ao alcançar a idade adulta, dando origem às mais variadas lendas no bairro. A aparência desleixada e os modos bruscos acresciam o nível de terror na comunidade.
Desde o primeiro contato os meninos da rua lhe advertiam:
- Você veio morar ali? É a casa dos loucos, cuidado com eles.
- Eles matam a dentadas as crianças!
- É sim, é sim! Meu primo já os viu levarem um menino pra dentro à força.
Assim o bairro de Amaralina se contextualizava emoldurado por uma praia que, por sua beleza, reunia poetas, tartarugas e baleias. Recheado de uma população rica em sua pobreza, capaz de transformar a inocência de sua ignorância em um filtro que descontamina o indivíduo de sua própria individualidade e adensa a cor da cidade com suas duvidas e certezas.
- Não se preocupe, eles são tranqüilos! – dizia seu pai.
Mas agora o garoto era dono do seu espaço, era Rei em seu quarto e queria o gosto da honra dos Reis. Entendia finalmente que a coragem não significa falta de medo, bem sim o conhecimento dos próprios limites e a determinação em expandi-los.
De certa forma, enquanto descia as escadas, repetia a si mesmo em silencio:
- Muito prazer Sr. Medo, eu sou o Rei.
Parado em frente à porta da família Bucão, ouvia o medo lhe responder:
- Volte para o seu quarto! Tranque-se em seu reino!
O garoto resolve calar a voz do medo com uma atitude impossível até o dia anterior: Silenciosamente desliza pelos lados da casa até a janela e, durante alguns segundos, fica ali com o nariz apoiado no parapeito observando o silencioso vazio no interior do apartamento. De repente um homem mulato abre uma das tantas portas e nota os minutos olhos curiosos na janela. Seminu, caminha furiosamente na direção do garoto e, com os olhos arregalados, grita ao petrificado xereta:
- Espiando a casa dos outros menino? Tá maluco?
Antes ainda de sentir o susto, ele responde:
- Eu não, o maluco aqui é você!
E após essa frase, dita e colorida com uma coragem inusitada, ganha a rua, correndo é claro, ansioso por contar aos outros meninos a sua aventura. Sem se dar conta de que, a partir daquele dia, seria visto como um intrépido entre os meninos do bairro e como um simpático e inteligente vizinho pelos Bucão. Além de reinar soberano, eternamente, em qualquer castelo que os medos de sua solidão lhe criassem.
O garoto cumpria seu papel em Amaralina e o bairro cumpria o seu, no coração de mais um baiano.