Como foi seu dia (2)
Como foi seu dia (2)
Nada é tão importante que seja definitivo.
Assim terminou a crônica de mesmo nome, publicada em novembro de 2008. Cruzes, que enormidade de tempo. Curioso que, a captação, de lá pra cá, alterou barbaridade.
Acho que as Leis Sintáticas que me governam mudaram suas estações retransmissoras, o que causou uma certa desafinação na sintaxe interna. Isso.
Gabriela veio de Ribeirão Preto, tem um belo visual e usa aliança de noiva. Depois de precisos 35 minutos cortando meus cabelos ela olhou pra mim e eu olhei de volta. Não havia meio da moça sair do hemisfério esquerdo e ir para o direito.
- Olha – disse ela sorrindo – acho melhor eu chamar meu supervisor.
Sorri algo parecido com “que seja”.
Chega o supervisor. Que idade tem essas pessoas, pensei indagativo, perdido em terra de gigantes que usam aparelhos nos dentes. Eles confabulam. Tudo o que eu havia solicitado era “curto na tesoura”. Isso porque antes me indagaram: qual o seu desejo?
Eles confabulam.
Antes ainda eu havia passado no Etevaldo, que vende bananas, e fiz a mesma piadinha dos últimos dois anos e tarará: tem banana? O homem da esfiha e seus milicianos, inaptos a perseguir quem de justo merece uma perseguição, perseguem Etevaldo, levam sua barraquinha, ele fica com lágrimas nos olhos, mas não desiste, já vi esse show três vezes esse ano, viaturas, fardas e o escambal para açoitar um senhor carioca de 68 anos que vende frutas nas esquinas de Sampa desde 1962.
Quanto à piadinha, é que ele está sempre ao lado do carrinho lotado de bananas. Normalmente as pessoas que estão perto sorriem à socapa. Quando sobra tempo, ele me conta histórias do Rio de Carlos Lacerda.
Gabriela e o supervisor debatem, minha imagem no espelho é a de um senhor semi tosado, ela diz que esse corte está sendo muito produtivo, pois afinal trata-se de um aprendizado, o supervisor explica como ela deve fazer com os dedos, meu reino por uma fotografia desse instante, em chapa 4x5, ou em negativo de vidro, que nem os do Militão, faz favor.
Antes do bananeiro, que eu considero um dos responsáveis pela manutenção de minha sobrevivência nesta ilha, foi a vez da piadinha com o New. Também há dois anos e tarará eu passo em frente à banca do New e, sempre que possível, bem na hora das pessoas carregarem o Bilhete Único, exclamo: senhor, onde fica a avenida Paulista? Ora, estando a banca em plena avenida Paulista, tem gente que arqueia a sobrancelha, franze o cenho, sorri, e, nunca, jamais, em instante algum, o New se apertou. De imediato ele tem uma resposta, desde o “não sei, também estou procurando”, até as rimas “sei onde fica a avenida dos Autonomistas, serve?”, ou, a mais comum, “acho que é pra lá”. Isso dura 3 segundos, se tanto, e se tornou um fato instituído, como um relógio quebrado que acerta a hora duas vezes ao dia, se tanto.
Gabriela pede que eu avalie a medida das madeixas do hemisfério esquerdo, que ela não termina jamais, e se meus olhares para ela não fossem através do espelho, eu estaria com torcicolo. Não sei porque ela ri bastante da minha fisionomia. Riu tanto que diz estar até com dor de barriga. “Tsk, um dia nos livramos dessa”, pensei, pois quando se corta o cabelo na máquina, fica-se possuído pela máquina. Só peritos e velhos barbeiros conhecem o “curto na tesoura”. Gabriela não preenche essas categorias, embora seu tom dourado e seu sorriso “vida, cheguei, e nada me tirará daqui”, me levam a alforriá-la.
Na banca do New, notícias frescas sobre a antiga sede do império. Lamentar o que, rumino, e concluo, lamenta-se o todo. Lembrei de uma crônica lida ontem e, sem explicação, veio a idéia de fazer um boletim da Rádio Ruído intitulado Edição Especial “Loucos de Amor”. Segue a seguinte notícia:
• Pessoas ensandecidas de amor incendeiam carros no Rio de crzzxxxxsneiro.....
Vai ficar pra depois. O percurso do New até o salão poderia ser medido em jardas ou em polegadas. Seres humanos, especialistas em complicar tudo. Desgostei das notícias. Ontem by night, o ex-secretário de segurança de não sei onde falou com bastante propriedade sobre o Rio e outros estados, sutilmente culpou respectivamente a mídia e a impunidade, disse que não estão contando que no Pará a violência triplicou, no Paraná o assunto está sério, em Salvador nem se fala, etc. Vamo q. vamo, eis a conclusão em 3x4.
Ao consultar o relógio e perceber os progressos de Gabriela, consultei a lógica, que de imediato avisou-me que sairíamos de lá no exato dia de São Nunca. Foi quando resolvi alforriá-la:
- Por que não usamos a máquina? – falei, como quem não quer nada.
Ela exultou, foi correndo buscar o aparelho, disse que poderíamos improvisar, usar a 3 nos lados e a 4 no topo, encolhi os ombros, ninguém em sã consciência teria outra reação, inda que, uma consciência realmente sã indagaria quanto custa uma máquina e por que não tê-la em casa?
- Você arruinou minha vida, todos os meus projetos, meu natal e ano novo – dizia eu pra ela, como quem canta uma cantiga com sono, ela gargalhava e ainda se atrevia a fazer esculturas com o hemisfério direito.
- Arruinou tudo, tudo, tudo – cantigava eu, mentalizando as próximas etapas do dia.
- O que você faz? – perguntou ela, depois da barbárie.
- Escrevo – respondi sério, medindo cautelosamente a devida pausa.
Ela hesitou um instante antes de retrucar: Ué? Eu também escrevo...
Não sei porque, nessa hora me veio a imagem daquele papel que se usava para embrulhar pão, um papel pardo com uma quase transparência, acho que hoje não existe mais.
Volto pelo mesmo trajeto e releio os cabeçalhos. Quantas notícias. Ai, ai, os caminhos que a cabeça da gente faz, mesmo tosada. A crônica que li ontem falava sobre o amor. A Rádio me volta à mente:
• Rapazes e moças repletos de amor invadem Cracolândia. Autoridades do ramo imobiliário dizem que crzzxxxxssss.....
Foi chegando em casa que lembrei de outra formulação, escrita num livro mágico há muito tempo:
“Não se pode odiar em qualquer sentido sem antes ter amado profundamente”.