XV de Piracicaba

Que o Brasil é o país do futebol todo mundo sabe.

Este belo esporte bretão se adaptou ao Brasil como um gringo em uma praia de areia branca a bebericar caipirinhas. São 800 clubes profissionais, 13 mil times amadores e uma rápida pesquisa no Wikipedia que só confirma uma paixão nacional que dispensa maiores comprovações.

Na vida social de um brasileiro, o futebol é a luz no fim do túnel da falta de assunto. Ele transita livre por todas as classes sociais, une opiniões e promove debates. Melhor que qualquer variação brusca de temperatura ou chuva inesperada para cortar o silêncio de um elevador subindo andares.

Futebol é chute de voleio que bate na trave e entra, é defesa de mão trocada aos 45 do segundo tempo, é o sorriso irônico ao colega de trabalho depois da rodada do final de semana.

Futebol é tudo isso. E muito mais. Mas não para Luiz Augusto. O rapaz nasceu com uma sina, um mal que não conseguia tirar, por mais que tentasse. Luiz era réu confesso de um pecado mortal que o acampanhou das aulas de Educação Física aos olhares perplexos em mesas de bares.

Para ele – pasmem - futebol era um esporte como outro qualquer.

Não que desprezasse por completo. Era como uva passa em uma torta de maçã: não fazia falta muito menos marcava presença.

Nessa última Copa do Mundo torceu com tamanha fé e afinco para a Seleção que quase convenceu. Xingava a televisão, bradava comentários como “Zagallo, coloca o Romário!”. Chegou a ficar verdadeiramente triste com a eliminação da Seleção. Mas entre nós: muito mais por que ia deixar de sair mais cedo do trabalho para churrasquear com os amigos.

A vida corria bem para nosso anti-heroí, que em anos de prática havia se tornado mestre em comentários genéricos sobre o tema e imperceptíveis mudanças de assunto na mesa do bar. Tudo ia tranquilo, até que um namoro entrou pela sua vida. E para sua sorte, Letícia também não era apegada as maravilhas das quatro linhas em um tapete gramado.

Tudo certo. Até que em seis meses , este dia chegou.

Sentado na comprida mesa de almoço de domingo, o recém-apresentado Luiz Augusto engolia entre garfadas sua timidez e receio pelo fatídico assunto. O almoço corria bem, com Luiz seguindo a voz materna que ecoava ordens de elogiar, agradecer e repetir o prato. Mas etiqueta nenhuma o salvaria do limbo:

- Então Luiz... Que time você torce?

A perguntou veio acompanhada dos olhares inquisidores de primos, irmãos e o grão-mestre daquele conclave: o sogro. Um homem de seus 50 e poucos anos, de vistoso bigode, careca e barriga acentuadas, com uma voz firme de quem não gosta de ser contrariado. A expressão de Letícia denunciava um misto de pena e presságio de vergonha alheia, enquanto revezava o olhar entre o pai e o namorado como quem acompanha uma acirrada partida de tênis.

Durante meses Luiz Augusto disfarçou o suor frio que corria sua espinha com as histórias do fanatismo de seu sogro pelo Sport Club Corinthians. Mas para isso, o jovem havia preparado uma carta na manga. E respondeu com a firmeza de quem em seguida beija o escudo do time.

- Sou XV de Piracicaba, desde criancinha.

Os Albuquerques se entrelhoaram, entre curiosos, surpresos e sadicamente um pouco decepcionados por ele não ser torcedor de nenhum dos times rivais. O grão-mestre externou a curiosidade da família:

- Mas... E aqui em São Paulo, qual você torce?

- XV de Piracicava também. Sou quinze onde for. – Um ator da Malhação seria mais convincente que ele nessa resposta. Mas passou. O plano estava dando certo.

O sogro soltou os talheres no prato. Luiz Augusto não sabia o que veria em seguida. O “tio” olhou sério para o canditado a genro, pensativo.

E abrindo um lento sorriso, começou a cantar com o mais legítimo dos sotaques caipiras:

- Cáxara di fórfi, carcanha de grilo. Suvaco de cobra, asa de barata! Garrafão de pinga, nhéque de portêra. Jaquetá de côro, já que tá que fique! 3 veiz 5 é...

Por um milagre da perspicácia, Luiz Augusto completou:

- Quinze!

O sogrão soltou uma risada alta.

- Esse hino é demais! Quem diria, um torcedor do XV. Sabe que admiro quem fica com o seu time, seja o tamanho ou aonde estiver. Não sei se a Letícia já te contou, mas eu já vi muito jogo do XV de Piracicaba. Meu querido vôzinho, que Deus o tenha, tinha um sítio por lá e era torcedor símbolo do Quinzão. Pediu para ser sepultado de uniforme e tudo.

Fez uma breve pausa, em silêncio respeitoso, e continou, todo animado:

- Vamo lá, essa você sabe Luizão. Com sua idade, você teve a sorte de ver o timaço de 95.

Com o pouco de coragem que lhe sobrava, Luiz foi all in na ousadia futebolística:

- Ô se lembro, tio. Time assim não se faz mais não. Uma seleção!

O sogro olhou para Luiz Augusto, cerrando os olhos. A fatia do abacaxi tremia no garfo do rapaz. Parecia que suspeitava de algo. Ou queria lembrar alguma coisa. Prosseguiu:

- Era Zé Wilson no gol, Jair, Tonhão, Ari e Danilinho fechando a lateral esquerda. O meio era só craque: Afonso, Curupira - volante dos bons - Chico Bahiano e Gera, o rei das faltas. Na frente tinha o matador do João Ramiro, junto do... Do...

Fez um sinal de fast foward com as mãos, pedindo para que Luiz completasse. O esforço do sogro para lembrar era tamanho que parecia que estava prestes a espirrar.

Luiz Augusto estava desesperado. Olhou para os lados, como que a procura de um milagre, de uma enciclopédia do futebol aberta na página certa. Só encontrou olhares desconfiados dos “primos”, de complacência da namorada e de impaciência da empregada, que esperava eles encerrarem o papo furado para perguntar quem queria mais café.

Em uma tentativa desesperada, buscou o recurso que sempre usou: mudar de assunto. E num impulso, a resposta saiu como uma súplica, quase como a confissão de que na verdade ele não sabia nada de futebol.

- O cafezinho!

Silêncio na mesa. Testas franzidas. Risadas seguradas, imitando um relinchar abafado de um cavalo. A resposta cortou imediatamente o “espirro”, fazendo que o sogro levantasse lentamente com o dedo em riste, apontando para o apavorado rapaz.

- Esse mesmo! - Disse isso estendendo o "e", como um cientista que grita "eureka" . - Craque. Que neguinho mais bom de bola, dava gosto de ver né não?

O almoço encerrou, com Luiz aprovado com um tapinha nas costas e um convite para ver um jogo do Timão, na feliz condição que ele não fizesse nenhum comentário contra o alvi-negro paulista.

Satisfeito, naquele dia Luiz Augusto voltou para casa cantarolando. A música? “Asa de barrata, carcanhá de grilou. Treis veiz cinco é quinze. Xis Vê, Xis Vê!”