O que aconteceria se o final da Copa do Mundo tivesse sido Brasil e Argentina?
O gol da consciência
A população não se continha. Os homens gritavam dentro de seus lares ou em meio às multidões que se aglomeraram nos grandes salões diante dos projetores. As casas, apartamentos, empresas, comércios e serviços se enfeitaram de verde e amarelo, como se o mundo fosse o resultado da união das duas cores. Não havia espaço para o tempo, para os deveres, para os chefes, para a mãe ou para si mesmos, o único compromisso era assistir, gritar, rir ou chorar.
Em nenhuma época do ano, ou até mesmo da história, os brasileiros se mobilizaram tanto quanto na final da Copa de 2006. Nem a colonização portuguesa nem a Ditadura Militar roubaram tanto o pensamento do povo, quanto a disputa entre Brasil e Argentina. A atenção que a população dispensou para o evento ultrapassou a crise política, os candidatos à presidência da República, a lavagem de dinheiro, o desemprego, o medo de assalto, o furo no telhado e o leite das crianças. O efeito do jogo foi tal qual o do ópio de Karl Marx.
Acabara-se a fome, a violência, as doenças e o medo, exceto o da derrota. Examinando a história se encontram exemplos antigos que registram um capítulo amargo no repertório de vitórias maravilhosas, campanhas inesquecíveis e conquistas brilhantes da Seleção Brasileira. Os argentinos sempre representaram um obstáculo a ser enfrentado, quer seja em campo, na política ou na economia. Em 114 partidas com a camisa do Brasil, Pelé, o rei do futebol, só sofreu 12 derrotas, sendo quatro delas contra a Argentina. O grande Jair Rosa Pinto, cuja carreira profissional começou em 1938 e terminou em 1963, ganhou dela uma partida (por um apertadíssimo 3 a 2) e perdeu cinco (uma por 5 a 1 e outra por 6 a 1). Mas a rivalidade atingiu seu ápice em Berlim.
A Alemanha nunca mais foi a mesma depois do confronto. Nem a queda do muro comunista gerou tantos gritos e arrepios quanto aquele jogo. O Olympiastadion estava superlotado, os torcedores se exprimiam entre os 74.176 lugares disponíveis. Era 9 de julho, exatamente às 15h, o sol refletia sobre o rosto do arbitro enquanto lhe corria uma gota de suor pela sua face. Suas mãos trêmulas colocaram o apito diante de seus lábios que exigiram dos pulmões o máximo de ar. O arbitro sabia que o som daquele apito daria início não só a um jogo, mas a uma guerra.
Aquela disputa não foi somente onze brasileiros contra onze argentinos, mas uma nação inteira contra a outra. O duelo no campo era rei versus rei. Ambos demonstraram tanto defesas quanto ataques irrepreensíveis. As faltas, no entanto, aludiam ao passado, ou melhor, as cicatrizes que o tempo não pode eliminar. O desejo dos guerreiros era a morte do adversário, para isso eles não precisavam de sangue, mas de vergonha.
Faltas, chutes a gol, impedimentos e defesas espetaculares, entretanto, o primeiro tempo terminou em 0 a 0. No vestiário os times suspiravam de apreensão pelo resultado estático apresentado por aquela partida. A incerteza que eles possuíam no começo do jogo só aumentara. Os argentinos pensavam: “Será que ‘los macaquitos' vão levar a copa pela sexta vez?”. Ao contrário, os brasileiros acreditavam: “Nós venceremos aqueles gringos”.
12, 25, 37 minutos do segundo tempo e a partida se mantinha nula. Nem “A” nem “B” consideravam a vitória. Os pênaltis pareciam iminentes. Enquanto o duelo no campo não designava um campeão, as torcidas se gladiavam na arquibancada. Os argentinos gritavam incontidamente que ‘los macaquitos', como chamavam os brasileiros, mereciam a morte. Os brasileiros em resposta cantavam esperançosos: “A copa do mundo é nossa”. Nem Santo Expedito resolveria a briga.
Antes de concluírem as últimas palavras da melodia, aos 41 minutos do segundo tempo, a bola invade o gol brasileiro, com uma cabeceada de Carlos Tevez. A Argentina faz 1 a 0. A torcida imediatamente comemora o gol provocando o Brasil com Tom e Vinicius: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça”.
A Seleção Brasileira, composta pelos melhores jogadores do mundo, luta insatisfeita para garantir aquilo que a argentina acabara de tomar. Faltavam dois minutos para o fim do jogo, o Brasil tentava recuperar a vitória ou a chance dela, mas o placar permaneceu o mesmo até os últimos segundos. O arbitro tenta aumentar as oportunidades do Brasil, acrescentado mais dois minutos ao segundo tempo, mas em vão é o seu trabalho.
O último som do apito naquele domingo soou como uma marcha fúnebre para o povo verde e amarelo. A seleção brasileira cumprimenta a vitoriosa Argentina de cabeça baixa, sem sorrisos e sem palavras. Os jogadores entram no vestiário e os torcedores em suas casas. Cessaram-se os gritos eufóricos, as multidões animadas e a voz de Galvão Bueno. O único som que se ouviu no final daquela noite foi o da consciência, repetindo várias vezes que o Brasil precisa ter mais que futebol para vencer, necessitava de educação, segurança, liberdade e igualdade. O povo brasileiro percebeu que o desafio não era marcar um gol, mas alcançar a si mesmos.
Cabreira