As Crônicas de Anduri

As Crônicas de Anduri

por Pedro Moreno (cidadão a contra-gosto de Anduri)

www.pedromoreno.com.br

Os Mecânicos

Caso possível prever alguma nacionalidade para o Todo Poderoso, com certeza poderia se dizer que ele é anduriense. Um pequeno país deitado em berço esplêndido com o Atlântico a lhe banhar suas costas é um país lindo e com todas os recursos necessários para uma independência econômica e política. Apesar de tal fato não confrontar com a realidade, por causa de um grupo de políticos espertalhões que talharam o crescimento da nação.

Mesmo assim o povo anduriense vive feliz com suas posses e problemas, tal gado em pasto novo na manhã orvalhada. Algumas nações maldosas atribuem as questões básicas não sanadas deste povo à sua mediocridade, algo muito longe da realidade! Afinal Anduri sempre foi colônia de outra nação cujo nome hoje é encontrado no anedotário do país. Apenas conseguiram fugir desta relação nefasta há apenas 200 anos. Pouco tempo.

Porém me alongo nesse assunto pois conheço o gosto ocidental pela história, o verdadeiro Anduri é constituído por seus cidadãos exemplares, cuja inveja alheia os classifica de caricatos. Nesta pequena história trataremos dos mecânicos

É considerado mecânico todo cidadão anduriense responsável pelo conserto de algo. A primeira particularidade já se encontra nas placas das oficinas. Anduri é falante da língua portuguesa tal qual o Brasil é, porém as diferenças ficam nítidas na hora de escrever, apesar de concerto se tratar de um grupo de músicos tocando alguma peça, lê-se “Concerta-se” nas placas de Anduri, assim como o correto “Conserta-se”, quase no nível de igualdade. Apesar dos dicionários nacionais fazerem a distinção entre os dois substantivos, o povo criou uma versão oficial e uma oficiosa para sua língua. Alguns linguistas estudam essa versão oficiosa porém suas regras não parecem mui claras.

Então você estrangeiro em visita à nossa bonita nação não se estranhe caso queira se deliciar em um Mozart e a única sinfonia que ouvir for a dos martelos sendo usados.

As particularidades não acabam. O povo anduriense, de acordo com sua cultura sólida, não vê sentido no uso de ferramentas específicas para os serviços a serem executados. Desta forma é comum os nobres cidadão conhecidos por mecânicos utilizarem suas chaves de fenda como talhadeiras e os alicates como martelos. Uma solução genial vinda de um povo não menos genial.

Em visões específicos, vale ressaltar os mecânicos de carro, valorosos bastiões do conserto por adivinhação. Você caro leitor deve estar se perguntando como seria possível tal milagre, mas digo para você que funciona! Certa vez meu carro estava com um ruído estranho, de imediato após alguns meses levei a um mecânico, este ouviu minhas reclamações sobre o automóvel e logo concluiu que era a caixa de câmbio e disse para um dos rapazes trocá-la. Abobalhado que estava perguntei se ele não faria alguns testes ou ao menos olharia para o meu carro, pois ele apontou para o errado e um de seus rapazes já desmontava uma caranga que só viera trocar o óleo. Ele me interrompeu e passou as mãos vagarosamente por seus cabelos brancos dizendo que tinha muita experiência.

Um mês depois do prazo dado para conserto fui à oficina pegar meu meio de transporte, quando o liguei este sequer funcionou, olhei para o mecânico que em um lance de pura inteligência estalou os dedos no ar e gritou “Já sei!”, trocou as homocinéticas, porém nada de parar o barulho. Depois de muitas peças trocadas, enfim meu carro voltou a funcionar depois que descobriram que uma bolinha de gude, talvez deixada por meu menino, estava dentro da roda e causava tal barulho. Em que outro lugar do mundo seria possível um mecânico conseguir consertar algo por adivinhação? Pois em Anduri esse sistema funciona!

E não só os carros de Anduri que estão em tão boas mãos. As geladeiras, as máquinas de lavar, as televisões, rádios e demais aparelhos domésticos gozam desse sistema adivinhatório. Agora vem o melhor e mais improvável. Você deve imaginar que para chegar nesse nível o mecânico teve que estudar muito o equipamento a ser consertado, mas a verdade é que tal classe sequer faz algum curso a respeito do assunto. Salvo uma minoria considerada tola pelos demais, grande parte desses trabalhadores nunca esteve em uma sala de aula ou outra oficina para desenvolver o seu ofício, algo inacreditável. Composta por homens que começaram sua profissão por acaso, essa classe social demonstra pouco ou nenhum interesse no objeto de conserto, é muito comum tais mecânicos desconhecerem por completo o nome de peças ou seu funcionamento. O que muitas nações podem considerar como mediocridade, em Anduri é o símbolo dos escolhidos.

Os Políticos

Só de abrir o jornal nas páginas de notícias internacionais que veremos a corrupção como grande entrave dos modernos sistemas políticos. Pouco consegue-se fazer para exterminar esse mal de vez, mas Anduri conseguiu uma solução eficiente.

Anduri é um país cheio de vizinhos ora bondosos, ora maléficos, como qualquer outro país. Suas políticas externas variam conforme o governante atual, mas de uma forma geral os andurienses se demonstram bastante passivos e subservientes com outras nações. Uma forma engenhosa encontrada por suas mais brilhantes mentes políticas de conviver com as nações do nosso planeta. Nesse oásis tropical reina dominante a Democracia, um sistema político cuja maioria elitizada determina o que é bom para todos. A voz do povo é encontrada nesses incansáveis trabalhadores conhecidos como Políticos.

Apesar de política ser considerada uma ciência, muito discutida na era clássica da Grécia, em Anduri (Ah, tão bonita e simpática Anduri), a política não é um tema estudado por aqueles que são políticos. A cada quatro anos é convocada uma eleição geral para decidir quem será o Presidente da República, os Senadores, os Governadores, os Deputados Federais e Estaduais, os Prefeitos e por fim os Vereadores. O método de escolha de um candidato pelo povo anduriense é um método muito complicado. Em geral tem mais probabilidades de ganhar aqueles que foram músicos, pois seus jingles são melhores, os palhaços, afinal o povo gosta de se divertir, e os corruptos, por que sabem fazer obras.

Neste momento você se pergunta se leu certo. Isso mesmo! Corruptos são uma peça chave na política de Anduri. Execrados em outros países, os ladrões, chantagistas, oportunistas e demais assemelhados tem uma vida fértil na política pública de Anduri. São eles os responsáveis pelas maiores e mais faraônicas obras do país, como o grande túmulo ao Eleitor Desconhecido, o Hospital de Doenças Incuráveis e Intratáveis Antônio Plínio, os Jardins Suspensos da Casa Presidencial e a mais cara e complexa de todas as obras: A Câmara dos Deputados. Baseados em slogans de “Roubar sim, fazer também”, os políticos de Anduri nutrem o respeito com todos os seus cidadãos.

Parte do bom desempenho demonstrado por esses nobres doutores advém de suas comodidades e regalias pagas de bom grado pelo contribuinte. Cada servidor tem direito a dez empregados que podem ser distribuídos entre secretários, responsáveis pelo trabalho burocrático, e ajudantes, nesta classe estão as faxineiras e cozinheiras.

Além de moradia paga pelo estado, carros, passagens de avião, e vários auxílios que seria impossível listar em tão poucas linhas. Um tratamento de rei para quem nos trata como realeza.

Os Servidores Públicos

Outra peça fundamental na bem mantida burocracia estatal é o Servidor Público. Este funcionário determinado serve aos cidadão andurienses como serve aos seus próprios filhos. Para eles não há tempo ruim que os faça desistir de ir trabalhar, o serviço pesado descorre de terça a quinta apenas com o descanso para o café da manhã, o almoço e o lanche da tarde nas suas corridas vinte horas semanais.

Esses cidadãos são conhecidos por sua alta capacidade de passar em concursos públicos e por seus empregos estáveis. Mas a sua força reside em conseguir “dar um jeitinho”.

O “jeitinho anduriense” é internacionalmente conhecido. Todos os turistas que já estiveram em nossa bela nação tiveram que “liberar um faz-me-rir” ou “ajudar para ser ajudado”. Através desta política de ajuda mútua, grande parte dos problemas são resolvidos deixando a população despreocupada com minucias burocráticas. Enquanto países desenvolvem sua doutrina em O Capital ou outro tratado qualquer, o povo de Anduri se orgulha de dizer que vê seu sistema organizacional no livro de Kafka, O Processo.

Os Jornalistas

A imprensa livre. Algo tão almejado em países em processo de democratização, sequer foi pensado em Anduri. Todos os jornalistas não-formados deste país (os jornalistas não necessitam de diploma ou algo do gênero), são contratados por setores da sociedade e refletem suas notícias conforme o interesse dos contratantes. Nada mais justo!

Em Anduri também há a imprensa underground, contratada geralmente por grandes conglomerados internacionais, eles tentam desestabilizar o governo democrático com noticiosos de outros países, porém o povo anduriense nasceu vacinado para não cair em tais despautérios vindos de fora.

Todo jornalista recém chegado ao mercado aprende logo o seu preço e pelo lado de quem deve lutar, formando opinião para aqueles que não conseguem tê-las por si só. Através de gravuras, nossos jornalistas conseguem transmitir suas ideias para a população... Gravuras? Isso mesmo porque em Anduri...

Os Professores

Todos sabem que a educação é a chave para um bom desenvolvimento. Esta é a base para um povo educado e consciente de seus deveres. Porém como pode esses pensadores da educação explicar o sucesso de Anduri?

A educação formal em Anduri é opcional, assim como a alfabetização. Poucos sabem ler, e os que se metem nessa enfadonha tarefa geralmente se torna um analfabeto funcional, o que já é alem do necessário. Logo a classe de professores é pequena e escassa em algumas regiões do país, tornando o acesso à educação formal uma não necessidade.

E aqueles que teimam em estudar? Primeira diferença encontrada no sistema anduriense é a aprovação automática. Desde tempos remotos nenhum cidadão é obrigado a estudar para passar de ano ou qualquer outra baboseira inventada pelos “cultos ocidentais”. Para se formar basta se matricular e ter um comparecimento em pelo menos 20% das aulas dadas, mais do que o suficiente para educar nossos cidadãos do futuro.

Por causa dessa política genial, muitas profissões sequer existem em Anduri, como é o caso do escritor. Esse ser amaldiçoado que apenas serve para alienar jovens em outras nações, na nossa gloriosa nação sequer encontra espaço para exercer tal ofício. Imagine a perca de tempo se todos os cidadão resolvessem ler um livro por ano? Pensando nisso os governantes não mantém bibliotecas ou e sobretaxam livrarias ou mercados que desejem trabalhar com tais objetos da perdição. Mais um ponto para Anduri!

Os Clérigos

Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra divina, não importa qual! Com esse sloagan na cabeça, o governo anduriense, consciente de seu papel social, incentiva a criação de templos em todo o país, levando a religião para lugares inacessíveis.

Graças a contratos firmados com o estado, templos conseguem fazer com que dízimos sejam diretamente descontados no holerite do trabalhado, poupando-o de eventuais esforços para se manter em dia com suas obrigações como fiel.

Como a maior parte da população não consegue ler seus textos sagrados, esses são recitados pelos clérigos nos templos dedicados ao divino. Alguns estudiosos, todos eles estrangeiros, dizem que há várias discrepâncias na palavra escrita e na falada, mas apesar disso tudo a fé continua inabalável em Anduri. Ámen!

Conclusão Precipitada

Anduri é um país de contrastes, que fazem dele a nação tropical mais diversificada e linda que pode ser encontrada nesse planeta. Seu estilo de vida e de não-pensar deveriam se tornar exemplos para os países de primeiro mundo. Talvez se estes tivessem a mesma visão que os andurienses tem, eles também poderiam desfrutar de um lugar agradável para se viver.

Um viva a Anduri, e que esta seja um farol para outros países!