T e D

T e D

T raspava os pulsos. O rosto transformou-se.

Riachos escorriam por entre os dedos, nas mãos, sobre o braço. Espalhavam-se na terra seca. Coagulavam. T fixava o olhar nos pulsos abertos.

Por mero acaso, estava lá. Dei com a conversa. Um rosto agitado segredava. Outro de olhar triste ouvia. Os tabuleiros estavam cheios de tralha que não distingui. Mal posso acreditar! Será um pesadelo? Como pôde cometer esta loucura?

T estava para ali. Os transeuntes passavam. À medida que o sangue jorrava, o corpo amolecia.

Fugi!

O rosto lamentava-se no refeitório. A paixão distrai. Os velhotes odeiam a fábrica. Mereço melhor sorte.

T esticou as pernas e fechou os olhos. O pensamento voou.

D enganara-o. A dor contorcia-se na cabeça.

D assoou-se a um guardanapo. As notas vão por água abaixo. Podia ter esperado pelas férias grandes!

T desvairava. As mãos eram cobras. Afundava-se num lamaçal.

Alguém tropeçou no corpo de T. A sirene feria o transeunte à espera do autocarro. Safo-me.

T nada via.

A ambulância travou; o samaritano apontou o corpo estendido. A ambulância desapareceu. Sumiu. Que alívio! O autocarro levou-o.

T entrara na cabeça. A morte não o assustava. Só o esquecimento lhe causava pavor. A primeira estrofe do Free Bird, de Lynyard Skyniard, o cantor rock esmagado num desastre de avião, estava viva: Se amanhã me fosse embora, lembrar-te-ias ainda de mim?

D: estou escaldada!

De T restará a impressão de que existiu. Gemeu.

Tocara para a aula. Afundei-me na cadeira. O professor falava na alegoria da Caverna. Concentrei-me em Sócrates.

Conheci T pela fotografia do jornal. Pareceu-me distante. D esqueceu T em dois ais.

Carreguei comigo anos a fio esta recordação.

O T existiu?

Não tenho a certeza.

RG, 1983

Por Mário Moura

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 23/10/2010
Código do texto: T2573275
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